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Cadê as creches?

Pouco mais da metade das 1,8 mil creches do programa federal Proinfância no Rio Grande do Sul foi concluída

Empresas que largaram as obras culpam falta de fluxo nas verbas federais pela interrupção na construção de centenas de escolas infantis prometidas para o Rio Grande do Sul

24/06/2022 - 22h29min


Humberto Trezzi
Humberto Trezzi
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André Ávila / Agencia RBS
Sérgio e Janete Eberhardt com os três filhos no que seria a Escola Parque Aliança, em Terra de Areia, no Litoral Norte. Obra inacabada integrava o programa Proinfância, lançado há 10 anos pelo governo federal

Em julho se completam 10 anos de um dos mais ambiciosos projetos construtivos já criados no país, o Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil (Proinfância). Esse projeto do governo federal surgiu em 2012 como possível redenção para o dilema de quem não tinha onde deixar os filhos na hora do trabalho. A execução foi pouco além da metade. 

No Rio Grande do Sul, foi projetada a construção de 1.843 creches e quadras esportivas. Desse total, 853 não foram concluídas. Por três motivos: ou foram canceladas (só tinham contrato, as obras sequer começaram) ou estão inacabados (o contrato findou antes da construção ser terminada) ou paralisados (a construção parou, mas o contrato segue vigente). 

Quando alguém analisa os esqueletos de creches inacabadas que proliferam em território gaúcho, um nome se repete: MVC Componentes Plásticos. Essa empresa, que está em recuperação judicial, começou a construir 41 creches e nunca as finalizou. Elas representam 41% das obras interrompidas em território gaúcho pelo gestor do Proinfância, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, o FNDE, ligado ao Ministério da Educação (MEC)

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As empresas asseguram que as escolas ficaram inacabadas porque o governo federal atrasou todos os repasses de verbas para as obras. E também porque municípios não cumpriram compromissos de terraplenagem. "Foram feitas  mais de 10 reuniões no Ministério da Educação, explanando o problema da inadimplência e solicitando a retomada das obras. Nada deu resultado, os recursos não vieram",  ressaltam representantes da Gatron (novo nome da MVC), em nota à reportagem.

A grande maioria das obras do FNDE é composta de escolas infantis do Proinfância, mas algumas são canchas esportivas. Do total de 853 projetos que não vingaram no Estado, 202 são da empresa MVC. A maioria nem sequer saiu do papel, mas 41 dessas creches da MVC chegaram a ser iniciadas – e não foram concluídas. Das 41, segundo o FNDE informou à reportagem, há planos de reformular ou retomar 10. As demais estão abandonadas. 

O caso está na mira do Tribunal de Contas da União (TCU), que acaba de aprovar auditoria específica para obras interrompidas do MEC em todo o país. Quase todas as construções abandonadas são escolas infantis. Dos 9,7 mil projetos suspensos, cerca de 2,3 mil tiveram alguma estrutura iniciada. 

Mesmo com esses percalços, o Proinfância fez mais do que deixou de fazer. Foram concluídas 15,6 mil obras e outras 3,6 mil estão em andamento. O que causa estranheza nos auditores, conforme documento do tribunal, é o governo federal ter priorizado erguer 2 mil novas escolas recentemente, quando há tantas construções inconclusas. 

O Grupo de Investigação da RBS (GDI) pesquisou sites do governo federal e dos municípios e descobriu que a MVC é a empreiteira que mais prometeu e menos cumpriu, entre os contratos pactuados com o FNDE. Quando o governo federal lançou o pregão do Proinfância em 2012, o Estado enfrentava um dos piores índices de déficit na educação infantil, com necessidade de mais de 215 mil vagas. A MVC fechou contratos para gerar 19,4 mil vagas em território gaúcho, com a construção de 208 dos 1,8 mil empreendimentos previstos pelo FNDE para o Estado (quase todos creches). Mas finalizou apenas 12 escolas (6% do previsto), com saldo de 1,9 mil vagas geradas. Outras empreiteiras também falharam no compromisso, mas a MVC é a que menos contratos cumpriu, proporcionalmente. 

O que aconteceu? É uma longa história. O governo federal tinha pressa para enfrentar o déficit na educação infantil. Só no Rio Grande do Sul era preciso criar 215 mil vagas. Até pela necessidade de rapidez, a primeira licitação do Proinfância, feita pelo Regime Diferenciado de Contratações, teve entre as vencedoras quatro empresas que elaboraram propostas construtivas inovadoras, que prometiam concluir em menos tempo e a custo menor que o convencional. Uma delas, a MVC, ganhou licitação para construir no país 1.241 creches (208 deles no Rio Grande do Sul), mediante substituição de tijolos por um polímero (com fibra de vidro), material mais leve. 

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O método, que se anunciava mais ágil e mais limpo do que a alvenaria tradicional, usa chapas prontas encaixadas. Só que a construtora não conseguiu fabricar as escolas previstas no prazo estabelecido. Alegou dificuldades financeiras por falta de repasses de recursos estatais e pediu reajustes de preços, não concedidos pelas prefeituras – que teriam descumprido ainda outros acordos, como preparar terrenos. A MVC chegou a se comprometer a fazer 900 até 2015 e iniciou mais de 600, segundo relato levado ao governo federal naquele ano. Depois, as obras foram paralisadas. 

O resultado é que, entre 2013 e 2015, a MVC concluiu apenas 12 creches no Estado. Isso ocorreu após parte das verbas ser destinada aos empreendimentos. Além da perda de dinheiro público e da deterioração do material desperdiçado nas obras interrompidas, as comunidades ficaram sem as vagas de creches que seriam criadas nesses quase 10 anos. 

A Federação das Associações de Municípios do RS (Famurs) intermediou reuniões entre prefeitos e representantes da construtora, que se comprometeu a retomar os trabalhos. Mas, apesar das promessas, as escolas não foram finalizadas pela MVC.

Algumas prefeituras, com a ajuda de verbas federais, abandonaram o método alternativo e, em muitos casos, usaram recursos próprios para finalizar as escolas, contratando outras empreiteiras, além de conseguirem ajuda repactuada com o FNDE. O pior é que em muitos casos essas construtoras firmaram contratos para finalizar as obras interrompidas da MVC e também não completaram o serviço. 

— Os prefeitos lutaram para concluir as creches quando a MVC as deixou incompletas. Conseguiram finalizar 160 dos 202 projetos pactuados pela MVC. Fizeram isso com recursos próprios, nos prédios mais avançados e verbas do FNDE nos demais. Já em relação às 41 interrompidas, muitas estão tão deterioradas que não apresentam condições de conclusão — diz Márcio Biasi, coordenador de Educação da Famurs. 

Em alguns casos, as prefeituras que retomaram os trabalhos tiveram de refazer toda a estrutura, porque a tecnologia da MVC não é compatível com o tijolo convencional, ressalta Biasi. O prefeito da cidade litorânea de Terra de Areia, Aluísio Teixeira, confirma. A MVC abandonou uma creche naquele município quando tinha 34% da obra concluída. A estrutura enferruja ao ar livre, e o município move ação por danos contra a empresa. A intenção é usar o terreno para uma nova creche, mas só após conseguirem vencer a causa judicial. Enquanto isso, a prefeitura paga aluguel de salas para as crianças pequenas ficarem. 

— Nem as fundações da creche inacabada podemos aproveitar mais, porque o tal material inovador proposto pela MVC não suporta o peso de concreto ou tijolo. Teremos de começar tudo do zero — lamenta o prefeito. 

A obra estava orçada em R$ 790 mil e, conforme o FNDE, foram feitos dois repasses de R$ 197 mil, cada. A construção apodrece a céu aberto. 

No TCU, chegou a ser cogitado que a MVC fosse declarada inidônea e proibida de participar de licitações federais por cinco anos, mas a medida acabou não sendo adotada. Premida por débitos, a empresa entrou em recuperação judicial em 2017. 

A razão social da MVC mudou para Gatron Inovação em Compósitos, cuja sede fica em São José dos Pinhais (PR). A MVC é uma sociedade anônima que tinha entre os acionistas as empresas gaúchas Artecola (74%) e Marcopolo (26%). A Marcopolo alega que se retirou da sociedade antes do projeto das creches. 

Colaborou: Cristine Gallisa


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