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Sem cropped

Escola de ensino fundamental de Capão da Canoa proíbe meninas de usarem roupas curtas

Psicólogos e psicanalistas alertam que a orientação impede reflexões contemporâneas

13/09/2022 - 22h16min


Aline Custódio
Aline Custódio
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Reprodução / Arquivo Pessoal
Bilhete escrito pela direção foi encaminhado aos pais

A decisão de uma escola municipal de ensino fundamental de Capão da Canoa, no Litoral Norte, de proibir alunas de usar roupas curtas gerou estranhamento em parte da comunidade escolar. Um bilhete foi entregue aos pais orientando sobre a questão.

No pequeno pedaço de papel endereçado aos pais ou responsáveis, a direção da Escola Municipal de Ensino Fundamental Iglesias Minosso Ribeiro, localizada no Parque Antártica, escreveu o seguinte: "Fiquem atentos às roupas de suas filhas, pois a partir de segunda-feira (12/9), não será permitido a entrada de roupas inapropriadas como: shorts, miniblusas, tops, croppeds... Att, Direção".

Ao encaminhar o bilhete a GZH, o familiar de uma aluna, que preferiu não se identificar na reportagem, comentou:

— Este bilhete foi entregue para alunos de 12 anos dessa escola. E ainda falaram em sala de aula que as meninas não poderiam ir de cropped nem de shorts porque os meninos estavam passando a mão na bunda das meninas. Ou seja, em vez de cobrar dos meninos o respeito, estão punindo as meninas pelas roupas que usam. Se a escola não tem uniforme, eles não têm autoridade de dizer como as crianças devem se vestir.

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Conforme a secretária municipal de Educação de Capão da Canoa, Raquel Goldani, a direção informou a secretaria sobre o envio do bilhete aos pais dos estudantes.

— Começa a esquentar aqui no Litoral e as meninas realmente começam a ir de miniblusa, de short para as escolas. Então, foi só na forma de uma orientação para evitar esse tipo de roupa na escola. Não que tenha algum menino ou alguém se passando. É só uma questão de ir com uma roupa mais apropriada para a escola. Foi só solicitado para os pais orientarem as filhas, as meninas, no caso, neste sentido da roupa adequada para a escola para evitar maiores complicações — justificou a secretária.

Ao ver a escrita do bilhete enviado aos pais, a psicanalista Ana Laura Giongo, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, encontrou "uma série de problemas":

— Um deles é dizer que "os pais devem ficar atentos". Isso mostra que a escola não escutou, não dialogou e não pensou junto com os adolescentes. Coloca as meninas numa posição passiva diante desta decisão autoritária. As escolas e os pais são os que falam sobre a maneira como as meninas deveriam se vestir. 

Ana Laura vai além:

— Estamos em 2022, momento em que o mundo propõe que se faça reflexão a respeito de gênero e de direitos iguais. Se uma escola não consegue perceber que isso é uma pauta da nossa contemporaneidade, a escola está fora de debates importantes para esta geração e fica neste lugar de certa contraposição ao que vem desta geração. 

Na adolescência, explica a psicanalista, as meninas estão se apropriando de uma nova posição no mundo, com um processo de construir um estilo. As escolas, a partir de certa faixa etária, liberam o uniforme porque a construção do estilo pessoal é algo importante para o adolescente

— Isso faz parte do trabalho psíquico do adolescer. Pergunto quem está incomodado nesta escola com os corpos aparecendo? O que teria ocorrido para a escola tomar essa decisão? Pelo jeito, a escola não reflete muito sobre o que são as juventudes hoje e quais as questões que fazem parte da constituição psíquica destes adolescentes — reforça a psicanalista.

Para Jane Felipe, professora titular do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu) da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que também é integrante do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero da universidade, trata-se de uma atitude machista por parte da direção da escola. E ela justifica porque os meninos não receberam tal recomendação e poderão seguir usando bermudas ou shorts, por exemplo. Segundo Jane, o fato mostra o quanto as escolas demonstram um despreparo em relação aos temas que envolvem gênero, sexualidade e violências.

— É preciso educar os meninos e homens para que não reproduzam atitudes machistas, misóginas e preconceituosas em relação aos corpos de meninas e mulheres — salienta. 

A professora e pesquisadora ressalta que é preciso que os municípios invistam na formação continuada de seu corpo docente, assim como os cursos de formação, responsáveis pela formação inicial de professores e professoras. 

—  Gestores e gestoras, secretários e secretárias de Educação, em especial, precisam ter uma formação mais condizente com os cargos que ocupam. Inaceitável que as escolas, seja através da direção, da coordenação pedagógica, corpo docente, funcionários e funcionárias, reproduzam práticas tão discriminatórias em relação às meninas, corroborando assim a ideia de que elas são sempre culpadas pelos comportamentos de importunação sexual dos homens — destaca Jane. 

Posicionamento equivocado

Conforme a psicóloga clínica e escolar Laura Graña, o complicado neste posicionamento da escola é que ele pode acabar reforçando a lógica da cultura do estupro de que, de alguma forma, a culpa de uma mulher sofrer violência recai sobre ela. 

— Dentro das escolas é preciso incentivar a educação sexual das crianças e dos adolescentes para que se possa, justamente, reverter esta lógica. É preciso inserir na educação pautas, autoras e autores, práticas educativas que questionem justamente a ideia de que, se existem situações complicadas em função da roupa que uma menina veste, a menina é quem está inadequada. Não é a roupa da menina que precisa mudar, mas sim a mentalidade de que ela pode ser importunada em função da roupa que veste.  

Para a psicóloga, vivemos uma sociedade patriarcal que vê o corpo da mulher como uma propriedade privada do homem.  Mulheres que transgridam está lógica, aponta Laura, são julgadas pela roupa que vestem, pelo comportamento que exercem, pela forma que vivem a sua liberdade sexual e dos seus corpos. 

— Todas as formas de existência feminina que representem uma diferença com relação ao que está dentro da norma do machismo estrutural são, muitas vezes, usadas como motivos para as mulheres sofrerem violência — alerta Laura.


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