Caso raro na Medicina
Agarrada à fé, família das gêmeas siamesas vive rotina de esperança e incerteza
História ganhou repercussão nacional porque, ao longo da gravidez, a mãe, de São Luiz Gonzaga, teve o pedido de aborto negado pela Justiça. A família mora numa pensão em Porto Alegre enquanto acompanha o estado de saúde das meninas, que já completaram um mês de vida e seguem internadas na UTI do Hospital Fêmina
Está particularmente corrida a rotina do pedreiro Marciano da Silva Mendes e da merendeira Lorisete dos Santos, ambos de 37 anos. Há pouco mais de um mês, eles deixaram a casa em São Luiz Gonzaga, na região das Missões, a cerca de 500 quilômetros de Porto Alegre, para viver temporariamente na Capital. Todos os dias, adentram o Hospital Fêmina, no bairro Rio Branco, com um objetivo: acompanhar o estado de saúde das filhas recém-nascidas Milena e Sofia, gêmeas siamesas entubadas na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) neonatal.
— Quando peguei a primeira vez no colo, foi uma emoção grande. Imagina, dois toquinhos ali. Tem dias que tão bem espertas, com os olhinhos arregalados. Em outros, a saturação (do oxigênio) cai — disse o pai a GZH na tarde de terça-feira (6).
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Milena e Sofia nasceram em 1º de novembro prematuras, com 32 semanas de gestação. Elas têm um único tronco, duas cabeças, dois braços e duas pernas. Segundo laudo do hospital durante a gestação, apresentam dois corações unidos pela mesma artéria aorta, dividem fígado e bexiga. Cada uma tem um rim e um estômago, mas apenas o estômago de uma funciona.
A cirurgia de separação não depende da vontade de pais e hospital. Devido ao compartilhamento de órgãos importantes, médicos consideram "inviável" a operação, relata Marciano. Internadas na UTI neonatal, elas não têm previsão de alta. Segundo o pai, a equipe não informa perspectivas de futuro - estarem vivas é um milagre e, agora, é um dia por vez. O hospital não fala com a imprensa sobre o caso.
Pedido de aborto
O caso ganhou repercussão nacional porque os pais acionaram a Justiça para solicitar o aborto, após exames mostrarem que Lorisete corria risco de morrer e as filhas eram "inviáveis". O pedido foi negado pela Justiça de primeiro grau, em São Luiz Gonzaga. A defensoria interpôs Habeas Corpus no Tribunal de Justiça, no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF), mas sem sucesso.
O casal está em Porto Alegre com o filho de quatro anos em uma pensão na Zona Norte, paga pela prefeitura de São Luiz Gonzaga. Sem trabalho, sobrevivem de doações para alimentação e transporte. O outro filho permanece no Interior. Nas próximas semanas, as gêmeas devem se submeter a uma cirurgia no estômago de uma delas em outro hospital.
— A gente não sabe do dia de amanhã. Os médicos não dão diagnóstico do futuro. Elas tão na UTI, sem previsão de alta. Temos que estar preparados pra tudo. É bem complicado. Decerto foi Deus que quis e a gente tem que ir até o fim. Elas tão com um mês e seis dias, diziam que não iam viver uma hora. É uma coisa nova pra gente. Seja o que Deus quiser — conta Marciano.
Quando recebeu GZH para a conversa, ele explicou que a esposa estava no hospital com as filhas. Lorisete se recuperou da cesárea e está bem de saúde fisicamente. Evangélicos, agarram-se à fé para tirar forças. No quarto da pensão, bíblias repousam sobre as camas de solteiro, uma rente à outra.
Caso raro na medicina
Gêmeos siameses são raros e costumam aparecer em uma a cada 200 mil gestações. A morte durante a gravidez ou após o parto costuma ocorrer em 90% dos casos, segundo a Fundação de Medicina Fetal de Londres. Irmãos podem ser unidos por tórax, abdômen, cabeça, osso sacro (no início da coluna, próximo ao bumbum) ou região pélvica. Também há casos de um gêmeo mais desenvolvido unido a um irmão menor. A separação é complexa, ocorre no geral na infância e não é recomendada para todos os casos. Há situações em que o médico precisa sacrificar um irmão para o que o outro viva, o que suscita questões éticas.
O parecer do Conselho Federal de Medicina (CFM) mais recente sobre o assunto é de 2001 e orienta que o médico deve intervir "até mesmo não preservando a vida de um dos xifópagos, quando estiver cientificamente patente que a manutenção da vida de um trará irremediavelmente a morte do outro. A escolha deverá ser feita de acordo com as probabilidades de vida de um e do outro: deixa-se de preservar a vida do gêmeo para o qual já não se veem possibilidades de sobrevivência, na tentativa de que esta atuação não leve, também o outro, ao desfecho fatal".
O neurocirurgião pediátrico Hélio Rubens Machado, professor de Medicina na Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto e chefe do setor de Neurocirurgia Pediátrica do Hospital das Clínicas da USP, já realizou duas cirurgias de separação de gêmeos siameses. De forma genérica, explica que a perspectiva de saúde é melhor para gêmeos que realizam a operação. Nunca um caso é igual ao outro porque cada compartilhamento de órgão, em algum grau, gera efeito distinto nos corpos. Livros científicos não servem como guia.
— Há casos em que um gêmeo teve um desenvolvimento praticamente completo e o outro tem má-formação, e você sabe que provavelmente não irá sobreviver. Mas, se não for separado, o outro não vai sobreviver. Aí está autorizado. Mas se os dois estão em condições de sobreviver, como você vai decidir quem vive? Não há família que suporte essa decisão. Há uma questão ética — afirma o médico.
Um dos casos mais famosos de gêmeos siameses que não se separaram é o das irmãs norte-americanas Abby e Brittany Hensel, que compartilham um torso e têm duas cabeças. Cada uma tem seu próprio coração, coluna, pulmões, estômago, rins e sistema imune. Além disso, cada irmã sente apenas o braço e a perna do seu lado do corpo, portanto tiveram que aprender a coordenar movimentos. Ambas cursaram faculdade e hoje são professoras, com mais de 30 anos de idade. O caso inspira a família de São Luiz Gonzaga.
— Se elas saírem dessa e vierem pra casa, vamos criar que nem os outros filhos, pra terem uma vida normal — planeja Marciano.
O cirurgião pediátrico goiano Zacharias Calil, que já atendeu a mais de 40 gêmeos siameses e fez 21 cirurgias de separação, explica que as operações são extremamente complicadas e exigem que os bebês tenham órgãos vitais próprios e independentes - como dois corações e dois rins, o que não é o caso das irmãs gaúchas.
— Quando a união é complexa, qualquer operação pode complicar as duas crianças, porque a circulação na pele que une tórax ao abdômen é muito grande. Não tenho experiência de pacientes meus que são gêmeos unidos na vida adulta. Mas tenho outros com 22 anos que fizeram a cirurgia e que vivem bem — comenta Calil.
O cuidado após o nascimento é intenso. Em artigo científico publicado em 2011, os fisioterapeutas Sabrina Bartel e Marcus Vinicius Marques Moraes ressaltam "a importância de um agente como um fisioterapeuta que estabeleça estímulos com qualidade e total conhecimento da tarefa e que possa auxiliar outros agentes como pais, cuidadores e educadores para restabelecer a funcionalidade motora minimizando sequelas instaladas".
Calil observa que o cuidado com gêmeos siameses exige atenção intensiva, idas constantes ao hospital e clínicas, além de gastos com remédios e alimentos:
— Como uma família de condição socioeconômica baixa mantém essas crianças? Precisam de fralda, alimentação mais saudável, leite caro. Tem lata de leite de R$ 300 para durar uma semana. Estado ou município precisarão assumir — considera o médico.
Contatado pela reportagem, o Hospital Fêmina informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que a equipe médica responsável por Sofia e Milena não falaria sobre o caso. Por nota, a instituição afirmou nesta sexta-feira (9) que as gêmeas apresentaram discreta piora do quadro ao longo da semana. Elas seguem necessitando de ventilação não invasiva, recebendo dieta por sonda e medidas de conforto. Aguardam leito em UTI pediátrica.
Aborto não foi permitido neste caso; saiba em quais possibilidades é autorizado no Brasil e em outros países
Após descobrir que a gestação era de gêmeas siamesas, a família acionou a Defensoria Pública para obter autorização para o aborto, mas o Judiciário negou o pedido em todas as instâncias. O caso passou pelo STJ e pelo STF - entenda o passo a passo nesta reportagem.
Legalmente, o aborto é proibido no Brasil, mas há três casos em que pode ser feito sem punição: risco de vida da gestante, gravidez gerada após estupro e feto com anencefalia (que, portanto, morrerá pouco após o parto). A autorização em casos de anencefalia foi dada pelo Supremo sob o entendimento de que um bebê com essa condição terá pouco tempo de vida após o parto, portanto, a gestação e o posterior luto provocarão grande sofrimento para os pais. Ao defender a possibilidade de a mãe das gêmeas realizar o aborto, a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul argumentou que o estado de saúde das gêmeas era análogo à anencefalia.
Hoje, mais de 60 países no mundo não criminalizam o aborto. A interrupção da gravidez pode ocorrer entre a 12ª e a 24ª semana de gestação, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). É o caso de países como Argentina, França, Espanha, Colômbia, México e Portugal.
O prazo é levado em conta porque é nesse período em que o feto forma o tubo neural. Juridicamente, a morte é definida como o término de estímulos neurais, o que gera morte cerebral, momento no qual é permitida a doação de órgãos, explica a defensora pública e professora de Direito Civil na Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio), Elisa Cruz.
No Congresso Nacional, um grupo de parlamentares articula a aprovação do projeto de lei do Estatuto do Nascituro, que prevê o direito à vida desde a concepção. Se aprovado, o aborto será penalizado em qualquer caso, inclusive após estupro.
Ao mesmo tempo, a ministra do STF Rosa Weber é relatora de um processo que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana. A magistrada se aposenta até outubro de 2023, portanto precisaria julgar a ação até lá. Não é, todavia, obrigada a fazê-lo.
Nos oito anos em que foi presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não alterou a legislação sobre o aborto. O presidente eleito afirma ser pessoalmente contra a medida, e o arco de alianças com congressistas de perfil conservador deve dificultar mudanças na lei.
Elisa explica que a discussão para descriminalizar o aborto envolve retirar o debate do Direito Penal, onde o aborto é visto como assassinato, para inseri-lo no debate sobre saúde e direitos reprodutivos.
— Deixar de debater direitos reprodutivos significa levar as mulheres a uma maternidade compulsória. A maternidade pode trazer saída do mercado de trabalho, maior dependência financeira em relação aos homens e diminuição da renda familiar. Isso é um debate necessário porque chama a atenção para os efeitos presentes da maternidade em relação às mulheres — diz Elisa.
No ano passado, o governo Jair Bolsonaro não assinou a declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) em apoio à proteção de direitos sexuais e reprodutivos por entender que o documento promoveria o aborto. O texto cita que os países signatários entendem haver uma "crescente resistência aos instrumentos internacionais de garantia igualdade de gênero, inclusive no que diz respeito a saúde e direitos sexuais e reprodutivos e autonomia corporal".
— Direitos reprodutivos englobam a informação sobre a decisão de ser pai ou mãe. Falar disso é falar sobre reprodução humana, o que é um direito fundamental para a ONU. Esse é o sentido seguido por Argentina e Colômbia: de que o aborto se torna uma possibilidade enquanto direito, junto com medidas de educação, fornecimento de métodos anticoncepcionais. O debate em direitos reprodutivos não é só aborto, mas também é aborto — afirma Elisa.
Para entender melhor o caso
Como surgem gêmeos siameses?
Ocorre em casos de gêmeos monozigóticos, em que os irmãos são idênticos. Em gestações normais, os embriões se separam por completo até uma semana após a fecundação, no geral. Mas, no caso de gêmeos siameses, a divisão é tardia e incompleta, entre o 13º e o 15º dia após a fecundação - os dois embriões, portanto, ficam parcialmente ligados.
Quais são casos de união mais comuns?
Pelo tórax ou abdômen, com compartilhamento de órgãos. Também é possível união pela cabeça, osso sacro (no início da coluna, próximo ao bumbum) e na região pélvica. Há casos de um gêmeo mais desenvolvido unido a um irmão menor.
Quando a cirurgia costuma ser feita?
Cirurgias de separação de gêmeos siameses costumam ser feitas quando os irmãos têm órgãos vitais independentes, o que ocorre normalmente quando são unidos pelas cabeças, nádegas ou abdômen. Em casos nos quais a união é feita pelo tórax, costuma haver compartilhamento de órgãos importantes, o que impede o procedimento.
Como ajudar a família?
Sem trabalhar, a família vive em uma pensão paga pela prefeitura de São Luiz Gonzaga, mas precisa arcar com os custos de alimentação e de deslocamento diário até o hospital para visitar as gêmeas. Doações podem ser feitas pelo PIX do pai, Marciano, no CPF 01282118064.