Antes do computador
Aos 83 anos, porto-alegrense que conserta máquinas de escrever tem acervo com mais de 600 equipamentos reformados ou à espera de restauro
Ebanez Flores já teve oficina dentro da redação de Zero Hora e, desde 1972, tem loja na Rua Espírito Santo, 394, no centro de Porto Alegre
Certo dia, chegou à oficina de E. Flores, no Centro Histórico de Porto Alegre, um senhor acompanhado de uma menina. O computador da garota havia estragado e o pai decidiu levar uma antiga máquina de escrever ao conserto, para não deixar a filha sem opção. A criança bateu o trabalho da escola na Olivetti, olhou para os homens no recinto e perguntou:
— Onde imprime?
A história é típica de quem não conhece a tecnologia das máquinas de escrever – afinal, não é qualquer invento que passa, instantaneamente, o texto digitado para o papel. O funcionamento dos centenários equipamentos, no entanto, é a especialidade de Ebanez Flores, 83 anos, que há 51 anos mantém a loja E. Flores na Rua Espírito Santo, 394.
O comércio, próximo da esquina com a Rua Washington Luiz, tem estantes repletas de raridades: Continental, Elgin e Royal dividem espaço com as tradicionais Olivetti. Uma Remington 12, toda de ferro, é estimada como a mais antiga, montada há cerca de 100 anos - não há data de fabricação impressa na maioria dos itens.
Mas ainda existem clientes nesse tipo de mercado? A resposta é: sim, quase todos os dias.
— Tem gente que traz a máquina que foi do pai ou do avô, e querem dar de presente pro filho. Eu já ouvi de um policial civil que usa datilografia porque depois não podem alterar o depoimento, só se colocar o corretivo, mas aí fica a marca. E se cai o sistema, o advogado pode finalizar e não perder a causa — lista o técnico.
Na oficina, parte dos produtos expostos é de clientes, que precisam de um pequeno reparo ou manutenção pela inércia dos componentes. Uma das dificuldades do avanço do tempo é a compra de fitas para os modelos manuais, elétricos ou eletrônicos, pois o número de distribuidores, hoje, é muito reduzido.
Outras máquinas foram negociadas por quem se desfez do que imaginava ser entulho, ou precisava liberar espaço em casa. O técnico pinta o corpo do equipamento, troca barras com defeito, revisa cilindro e compressor. O valor de um aparelho revitalizado varia, mas chega a ultrapassar R$ 1,5 mil em alguns casos. Há opções abaixo de R$ 500, em especial as mais compactas.
Barulhentas redações o conquistaram
Ebanez entrou pela primeira vez em uma redação jornalística na Caldas Júnior, no final dos anos 1960. Era vendedor, mas tinha um segundo interesse: usar o telefone para falar com seus chefes, na matriz, em São Paulo. Na época, uma ligação interurbana podia demorar horas para ser conectada. Enquanto aguardava, ficou observando o barulho incessante das teclas. Criou laços e o desejo: a máquina de escrever seria sua profissão.
— Liguei pra São Paulo, pedi pra me demitirem e com o valor da rescisão eu comprei a empresa que fazia manutenção. Empresa, não, né, meia dúzia de ferramentas — brinca, ao lembrar da pouca estrutura.
Flores passou pelo Diário de Notícias e, com a alta demanda do jornal Zero Hora, virou exclusivo do Grupo RBS, atendendo na própria sede da empresa.
— Era muita máquina, então eu passei a ser o técnico à disposição da Zero Hora — recorda.
Foram 24 anos de atendimento à ZH, entre 1974 e 1998. Os ficheiros até hoje mantidos em sua posse têm data, código da máquina, marca, modelo e numeração.
Sua paixão pelos equipamentos não era compartilhada por todos os profissionais que brigavam com o teclado. O desacordo quase lhe meteu em confusão, quando debateu a criação de um panfleto com fins educativos aos repórteres.
— Eu queria fazer um memorando e passar para os repórteres pedindo pra cuidar da tampa das máquinas. Mas me disseram, “não faz isso”, os repórteres são as meninas dos olhos do seu Maurício Sobrinho — recorda.
O jornalista Antônio Carlos Macedo, que viveu o período das redações - ainda mais - barulhentas, defende os colegas.
— No bater as teclas com rapidez, muitas vezes a gente batia duas juntas e dava uma “acavaladinha” nas teclas. Tinha que bater (próximo do papel) para “desacavalar”, e rapidamente seguir o texto. Se tivesse que tirar a tampa, era um trabalhão. Na época, já se contavam segundos — explica Macedo, durante o programa Gaúcha Hoje, da Rádio Gaúcha, na manhã desta quinta-feira (12).
No fim das contas, o técnico entrou em acordo com as equipes de limpeza: elas retirariam as tampas do lixo, salvando a peça e a harmonia na redação.
Fax, calculadoras e máquina registradora
Na oficina, Flores conta com um fiel escudeiro. Jorge Cipriano Neto Vargas, 66 anos, está há quatro décadas na feição de monta e desmonta dispositivos.
— Gostei e jamais abandonei — resume.
A contabilidade da empresa é feita a mão, em um livro de registro de folhas desgastadas. Ao analisar os números, nota que o movimento está fraco em janeiro: menos de uma dezena de atendimentos ocorreram nas duas primeiras semanas de 2023. Ao lado da escrivaninha, um fax é mantido fora da tomada, pois o último documento que por ali passou já fugiu da memória.
A linha principal de produtos é acompanhada por outra tecnologia obsoleta: calculadoras com bobinas para emitir extrato. Sharp, Casio, Canon e Panasonic estão entre as mais populares, espalhadas pelo imóvel. Ao todo, ele contabiliza 640 aparelhos.
Em outro canto, uma máquina registradora acabou abandonada por uma família que pagou R$ 750 pela assistência, em 2015, mas jamais retirou o volumoso objeto. Situação semelhante vive uma linda Olivetti Lettera 32, encomendada na cor vermelha, e que espera há anos pelo comprador.
Sacanagem maior, só a do repórter de GZH, ao questionar a velocidade de navegação na internet das máquinas de escrever.
— Não tem nem 1G. Só a tecla G — responde, devolvendo a provocação.