Mulheres da periferia
Guerreiras: conheça Virgínia, que superou a miséria e a violência doméstica e hoje estampa o Muro da Mauá
Funcionária do DMLU, moradora da Capital, descobriu em si uma força que não sabia possuir
Entre as imagens de atletas, artistas, empresários e demais personalidades que estampam o Muro da Mauá, na zona central de Porto Alegre, a foto de Virgínia Terezinha da Silva, 57 anos, talvez seja a mais enigmática. O olhar demonstra uma certa melancolia, a câmera a retrata de cima para baixo. Virgínia parece frágil, mas, ao mesmo tempo, exala força.
A funcionária do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), moradora do bairro Jardim Protásio Alves, tem tanta história para contar, que não cabe em uma foto. Ela é a Guerreira do mês de abril.
É com orgulho indisfarçável que Virgínia ostenta o uniforme laranja do DMLU. Pode-se dizer que a sua vida tem um antes e um depois do contrato assinado como funcionária pública.
É por aí que ela começa a contar a sua história:
– No começo, teve um concurso para gari. E como a gente vem de uma família muito pobre, pobre, pobre, meu padrinho de casamento, o Sebinho, disse assim pra mim: “Ô afilhada, por que tu não faz também?”.
Na época, Virgínia, natural de Viamão, morava na Vila Cruzeiro, para onde foi ainda criança. Não havia dinheiro para pagar a seleção para o certame municipal:
– Começamos a juntar osso, latinha, panela velha. Quando a gente vendeu, consegui pagar a taxa.
Ela recorda o sábado em que foram realizadas as provas:
– Cheguei lá para fazer, tinha uma multidão de gente, e eu pensava: “Não vou conseguir”. Tava cheio de gente jovem...
Com 26 anos, então mãe de quatro filhos, Virgínia se achava velha, devido ao seu histórico de vida cheio de sofrimento. Mas realizou as provas e foi selecionada.
– Ser funcionária pública foi a coisa mais maravilhosa que aconteceu na minha vida. No meu primeiro salário, que foi no dia 20 de dezembro de 1991, eu pensei assim: comida. Primeiras coisas: comida, vestir os meus filhos, o que eu hoje consegui – conta.
Bem antes, as primeiras decisões da vida foram levadas pela miséria. Ela relata:
– Eu me ajuntei com 13 anos, por comida. Pobre não pensa muitas vezes, quando não vê a alimentação todos os dias. Eu achei que o casamento seria uma caixinha de fósforo: tu limpa a casa, faz as comidinhas, e está tudo bem. Não tinha a ideia de como seria a vida de casada, mas eu queria, tinha a fantasia, porque eu teria alimentação todos os dias na mesa.
Apenas uma vez ela embargou a voz durante a entrevista. Foi quando contou como é sentir fome:
– Quando tu passa fome grávida, a primeira coisa que vem é o fracasso como mãe. Porque tu vê o teu filho chorar de fome, e sente na tua barriga a criança se movimentar com fome. Tu olha e tu não tem esperança de vida. Mas, lá no fundo, eu sabia que eu era muito forte.
Histórico de violência doméstica
Se a fome e a miserabilidade marcaram a trajetória de Virgínia, também a violência doméstica foi um capítulo cujas marcas nunca serão apagadas.
– Eu peguei um marido muito truculento. Comecei a apanhar muito. Aí, para não contar para a minha mãe, que era uma pessoa doente, eu escondia muita coisa – relembra.
Então uma adolescente de 13, 14 anos, ela se refugiava na casa da mãe, que ficava a poucos passos da sua:
– Quando as coisas apertavam, eu ia lá para a mãe. Meu primeiro filho, Luiz, eu tive com 15 anos. Passei os nove meses junto com a mãe, mas uma hora precisei voltar para casa.
Leia mais
Uma mulher é agredida no RS a cada 22 minutos
Casa de passagem abre em Porto Alegre com capacidade para atender mais de cem mulheres vítimas de violência
Quais os caminhos para impedir feminicídios quando a medida protetiva não é o suficiente
Os filhos nasceram, as surras continuavam. Quando chegou a primeira menina, Bruna, a número três da escadinha, ela achou que o nascimento amoleceria seu companheiro, mas nada mudou.
Depois disso, Virgínia passou a crer que o trabalho no DMLU e tudo que conquistou faria parar a violência.
– Quando eu entrei (no DMLU), eu achei que iria passar tudo, mas não passou. Porque os tapas, “os pau”, vinham, continuavam vindo. Ele bebia, era um homem muito violento. Tinha dias que eu ia para o serviço sem dormir. Meu primeiro chefe era muito compreensivo. Se ele sabia que eu estava machucada, ele me botava em ruas a varrer sozinha. Nestes dias eu preferia varrer sozinha, porque ali eu chorava, tinha que tirar força de algum lugar.
Onde pedir ajuda
- Para comunicar casos de violência contra a mulher, ligue para o telefone 180 do governo federal ou contate o Disque-Denúncia, pelo 181.
- A Polícia Civil do Rio Grande do Sul também tem um WhatsApp para atendimento. O número é (51) 98444-0606.
A volta por cima, 17 anos depois
No total, Virgínia passou por seis gestações e teve cinco filhos, todos com o mesmo marido. E a trajetória de violência só foi interrompida quando ela finalmente percebeu a força que possuía. Foi quando começou a participar de um projeto do DMLU na Ilha Grande dos Marinheiros, como monitora. Ela ensinava um grupo de cerca de 15 pessoas a lidar com o lixo:
– Os seres humanos têm que reciclar, mas não precisam comer no meio do lixo. A gente entrava dentro do pátio deles, era um lugar de muita pobreza. Eu varria, limpava, dizia: “Tá vendo a sua casa, o que a senhora pode fazer para melhorar? Limpa a tua casinha, passa um pano. O lixo que vocês reciclam, não precisa estar dentro de casa”. Eu fui ensinando eles a ter um pouco de dignidade.
E a limpeza de Virgínia também foi interna:
– E aí eu também fui mudando. Eu deixei de apanhar quando vi que era forte. Forte em dizer “hoje eu não vou mais apanhar”. Pela primeira vez, eu revidei. Daquele dia em diante, eu nunca mais apanhei. Mas levei 17 anos para saber que eu era forte.
O casal se separou, mas Virgínia admite que ainda foi atrás dele algumas vezes, até o rompimento definitivo:
– A doença fica em ti, e tu acaba voltando para aquela pessoa. Mas chega uma hora que tu não quer mais apanhar. Tu vê um casal de mãos dadas, abraçado, se beijando. Tu te pergunta: “Por que eu não posso (ter uma relação assim)? Teve uma hora que eu não quis mais. Foi o momento mais difícil e mais gratificante como mulher.
A foto no Muro da Mauá
Virgínia não sabe ao certo como foi convidada para o projeto Persona – Gente do Muro, e acabou tendo seu rosto no Muro da Mauá. As fotos foram feitas pela artista visual gaúcha Raquel Brust. Ela calcula que tenha a influência da filha Bruna no convite, mas não se arrepende de ter aceitado:
– Olhar para aquela foto é olhar para uma mulher triste, ao mesmo tempo feliz, ao mesmo tempo mostrando que nós, negros, somos capazes. Chegamos aonde chegamos pela nossa história de força, de vida. Porque a foto que eu tirei, foi para mostrar superação, e ver o quanto a vida me judiou, mas me fez amadurecer, e chegar aonde eu cheguei. Aquela foto, eu tirei para mostrar para as pessoas que até o mendigo que está ali, atirado, é capaz de lutar pelo amanhã. Aquela mulher que apanhava, que não achava mais saída, ficou para trás. Meu filho me disse esses dias: “Eu achei que eu iria te perder com 30 anos, e tu já chegou aos 57”. Então, aquela foto é tudo isso, é toda essa história e muito mais.
Um futuro diferente para a família
Com seu trabalho e determinação, Virgínia conseguiu romper o ciclo de miséria na família. Ela tem orgulho em contar que todos os filhos estão encaminhados na vida. Os mais velhos, Luiz, 40 anos, e Marcos, 39, trabalham como vigilantes. A filha do meio é a deputada estadual Bruna Rodrigues (PCdoB). Mari, 32 anos, coordena um grupo de higienização em um posto de saúde. E o caçula Kauã, 19 anos, estuda para entrar na universidade.
A reportagem pediu para Bruna falar sobre as influências que teve de sua mãe:
– Falar da dona Virgínia para mim é um presente. Minha mãe é uma mulher negra, oriunda da periferia da cidade, que cria cinco filhos, majoritariamente sozinha, fruto de muita violência doméstica, mas acima de tudo fruto de muita fé. Sempre que lembro de um símbolo de força, lembro da minha mãe. É a mulher que me ensinou a não desistir dos meus sonhos, que me ensinou que dá para cair, levantar e seguir adiante e que, para defender os nossos, nós precisamos ser leões e leoas. É uma mulher que agarrou a vida na unha, que lutou para não perder nenhum filho, que é o meu maior símbolo de força e resistência. Eu não seria quem eu sou hoje se eu não fosse filha dessa mulher.
Bruna prossegue:
– Nós engravidamos praticamente juntas. Meu irmão tem sete meses de diferença da minha filha. E foi dividindo um prato de comida que a gente sobreviveu. Eu na adolescência e ela num momento difícil da vida. Mas, hoje, estar aqui, sendo a mulher negra mais votada do Estado, deputada e filha da dona Virgínia, mulher gari, que não perdeu a esperança em nenhum momento, é símbolo de muita gratidão. Sou grata àquela mulher que hoje tem o rosto estampado na Mauá e que simboliza tantas de nós.
Participe
- Conhece alguma guerreira que mereça ter a sua história contada pelo Diário Gaúcho? Mande um e-mail para lis.aline@diariogaucho.com.br ou envie mensagem via WhatsApp (51) 99947-0487.