Desafio na Capital
Roupas, sapatos e eletrônicos: comércio informal ocupa calçadas no centro de Porto Alegre e acende alerta para busca por soluções
Agentes da prefeitura fazem operação e afirmam que já apreenderam mais de 12 mil óculos falsificados em 2023, enquanto trabalhadores ambulantes citam necessidade de ter uma renda
O desemprego foi o que levou João*, 27 anos, para o comércio informal, atividade que tem como renda principal há cerca de três anos. Ele vende toucas de lã na Rua Otávio Rocha, no Centro Histórico, em Porto Alegre. Antes, trabalhava como porteiro, com carteira assinada. Com o impacto econômico da pandemia, o posto ocupado por ele foi substituído por uma portaria eletrônica.
— Trabalho das 7h até as 20h. O limite é a tua necessidade, né? Mas tá dando para sobreviver. Não tem uma garantia de renda todo o mês. Uma semana tu vende, outra semana tu não vende — explica João.
Quem anda pelas ruas do Centro Histórico não consegue deixar de reparar na quantidade de pessoas atuando como João, no comércio informal — aquele no qual os trabalhadores não estão resguardados por direitos trabalhistas. Esse tipo de trabalho provoca questionamentos sobre a fiscalização exercida pelos órgãos públicos e a concorrência considerada desleal pelos lojistas.
De um lado, os comerciantes citam que nas lojas precisam pagar aluguel, impostos e demais encargos. Já os trabalhadores do comércio informal citam a necessidade de ter alguma renda. A dinâmica expõe conflito de interesses e uma problemática social que gera reclamações de ambas as partes.
A Secretaria Municipal de Segurança afirma que apreendeu neste ano, até agora, 12,5 mil óculos de sol e de grau falsificados no âmbito da operação Calçada Livre. O material estava em endereços particulares fiscalizados por agentes da prefeitura ou nas mãos de vendedores ambulantes.
O número nem de longe contempla a variedade de itens à disposição, que vão de meias e outros itens do vestuário, como calças, blusas e tênis, a eletrônicos como caixas de som e fones de ouvido, além de outra infinidade de utilitários expostos juntos aos pés de quem anda pelo Centro Histórico. O argumento da pasta para a restrição nas apreensões é que a busca prioritária tem sido para tirar de circulação os itens que podem ocasionar problemas à saúde da população. Por isso, os óculos falsificados aparecem com destaque no balanço fornecido à GZH.
A Secretaria de Segurança garante que tem intensificado as ações da Operação Calçada Livre, com o apoio da Guarda Municipal (veja o posicionamento completo abaixo). “O planejamento da pasta prevê avanços graduais no recolhimento de outros itens, com o objetivo de reduzir cada vez mais a atuação dos ambulantes irregulares na Capital”, diz a nota enviada à reportagem.
A prefeitura da Capital, por meio da Diretoria-Geral de Fiscalização, diz ter 42 servidores para a fiscalização dos comerciantes, tanto daqueles que estão regularizados junto ao poder público, com alvará, quanto dos irregulares.
Atualmente, o conceito do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre comerciantes informais abrange assalariados sem carteira de trabalho assinada e quem trabalha por conta própria, mas não tem CNPJ nem contribui com a previdência.
No momento em que a reportagem de GZH conversava com um vendedor na Rua Otávio Rocha, dois guardas municipais o abordaram e pediram que retirasse a mesa com toucas e meias do local. Na mesma hora, o ambulante pediu ajuda de um conhecido para levar a pequena estrutura para a calçada.
A necessidade foi o que levou um homem de 66 anos a trabalhar nas ruas. Ele saiu do Pop Center para um ponto da Rua Marechal Floriano Peixoto. Em razão da pouca quantidade de vendas, não conseguiu mais pagar o aluguel no local inaugurado em 2009 para reunir os ambulantes que ficavam nas ruas e praças da área central de Porto Alegre.
— Estava trabalhando até domingo para conseguir pagar o aluguel — conta o vendedor de camisetas, meias e outras peças de vestuário.
Na rua, a situação não melhorou muito. O homem diz que vende de R$ 30 a R$ 60 por dia, em média, mas há vezes em que nenhum item é comercializado.
Os comerciantes informais acreditam ter uma vantagem em relação aos seus “concorrentes” das lojas tradicionais: o preço. Os anos de experiência, segundo eles, comprovam que as pessoas optam, muitas vezes, por comprar o que está na rua já que é mais barato. Eles reconhecem que o custo menor só é possível porque os produtos são cópias dos vendidos em outros locais.
— Todo mundo já vem sabendo que o nosso produto é do Paraguai. Eu tenho ciência disso. Não é um negócio de marca. Mas vêm por causa do preço. Por que tu acha que uma pessoa compra um tênis falsificado? Tem gente que não tem condições de um tênis original para um filho. Qualquer “tenizinho” aí é cento e poucos pilas, duzentos, ou mais. Quem é que tem condições? — disse um dos ambulantes ouvidos pela reportagem.
Busca por soluções
A economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e especialista em Mercado do Trabalho, Lucia Garcia, cita as possíveis soluções para o tema. Para ela, o que pode tirar os comerciantes informais da rua e gerar um ambiente mais harmonioso com os lojistas vai além de políticas de fiscalização. No entendimento de Lucia, é preciso haver discussão propositiva de crescimento econômico que abra novos horizontes de oportunidades.
— Temos descenso social. Pessoas que vão perdendo posições sociais e que acabam na rua. Acabam tendo como única alternativa isso — analisa a economista.
O presidente do Sindilojas Porto Alegre, Arcione Piva, pede uma solução para esse conflito comercial. Ele espera por um esforço conjunto, especialmente do poder público, para que os impactos da informalidade sejam reduzidos.
— Se esses produtos vendidos hoje de forma irregular, nas calçadas, nas ruas, forem vendidos por lojas formais, acaba gerando mais imposto, mais renda. Isso ajuda o governo com as suas políticas públicas, é um ganha-ganha na verdade. É preciso esse esforço conjunto — propõe.
Para Piva, além do impacto financeiro, as consequências sociais e de saúde também precisam ser enfrentadas:
— Essas pessoas que estão lá trabalhando com mercadorias do comércio informal, na sua maioria, não tem carteira assinada, não recolhe INSS, não tem seguro social no momento em que forem acometidos por uma doença. E tem também o impacto na saúde. Tem muitos produtos, especialmente o óculos, materiais elétricos, que podem gerar danos irreparáveis à saúde do ser humano.
O presidente do Sindilojas Porto Alegre afirma que é necessário esforço de diversos setores da sociedade para qualificar a mão de obra dos ambulantes e fazer com eles tenham condições de atender as necessidades dos empreendedores formais, como funcionários.
A economista do Dieese Lucia Garcia afirma que geralmente as autoridades, como prefeitos e governadores, não querem colar os seus nomes em ações de fiscalização. A própria população, por vezes, é contra esse tipo de comportamento. Também por isso, ela argumenta que representantes do poder público precisam pensar alternativas econômicas que sejam mais atrativas para quem está nas ruas.
— A solução para debelar o comércio de rua não é regulamentação nem poder policial, é efetividade econômica. Vamos resolver o comércio de rua com crescimento econômico — reflete Lucia.
A economista do Dieese pensa que é preciso construir discussão de economia profunda e de longo prazo. Ela lembra que os camelôs, que inundaram o centro de Porto Alegre nos anos 1990, “desapareceram” das vias públicas com a criação do camelódromo, o Pop Center. No entanto, ao longo dos anos, começaram a retornar, em um movimento intensificado a partir de 2014, com a chegada na América Latina dos efeitos da crise econômica iniciada em 2008.
* Nome fictício
Nota da prefeitura de Porto Alegre
"A Diretoria-Geral de Fiscalização (DGF), órgão responsável pela gestão dos fiscais ligados a todas as pastas da prefeitura de Porto Alegre, informa que 42 servidores ligados à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Turismo (SMDET) atuam, hoje, junto aos comerciantes.
Entre as atribuições destes profissionais está o monitoramento da atuação dos ambulantes - tanto aqueles que têm situação regularizada junto ao Poder Público, por meio de alvará, quanto os que estão irregulares.
Além da rotina padrão dos fiscais, que percorrem os locais de maior movimento na Capital, a Secretaria Municipal de Segurança (SMSEG) coordena a Operação Calçada Livre - força-tarefa que intensificou as ações na Região Central da cidade, com o apoio da Guarda Municipal.
Além de coibir o comércio irregular, a ofensiva também visa garantir que os estabelecimentos regulares cumpram todas as regras fixadas pela Legislação de Porto Alegre. Eventuais denúncias podem ser encaminhadas por telefone, nos números 153 e 156, ou no aplicativo 156+POA.
A Secretaria Municipal de Segurança busca, prioritariamente, tirar de circulação os itens que podem ocasionar problemas à saúde da população. Por isso, os óculos falsificados aparecem em destaque no balanço. O planejamento da pasta prevê avanços graduais no recolhimento de outros itens, com o objetivo de reduzir cada vez mais a atuação dos ambulantes irregulares na Capital."