Desigualdade
Especialistas apontam caminhos para lidar com desigualdade social e de renda
Por um mês, o Diário Gaúcho acompanhou uma família da Capital que sobrevive com a renda média igual à de metade da população, segundo estudo do IBGE
Por um mês, acompanhamos a família Conceição da Cruz, composta pelos pais Rogério e Roselaine. Por seus filhos Henrique, Vanessa, Amanda, Alice e Yasmim. E por um neto de três anos. A reportagem busca retratar como vivem os brasileiros que tem renda média inferior a R$ 18 por dia e por pessoa. Foi a quantia média com que 50% dos brasileiros viveram em 2022, segundo o IBGE. Esta é terceira parte da reportagem, que foi dividida em três. As outras duas partes estão aqui e aqui.
Apesar de não estar no pior cenário, esta metade menos desfavorecida onde os Conceição da Cruz está recebe, em média, 32,5 vezes menos do que os 1% mais ricos. É um distanciamento grande, sinal da desigualdade que ainda incomoda no país. Ao menos, no documento divulgado pelo IBGE, o índice de Gini, usado para medir a desigualdade (entre 0 e 1, quanto mais próximo de zero, melhor, quanto mais perto de 1, mais desigual) ficou no patamar mais baixo da série histórica: 0,518, ante 0,540 em 2012.
— A formação da desigualdade vem desde a República Nova. É um processo de formação social longa, não começou por causa da inflação alta nos anos 1980 nem de outras crises recentes. É desde a formação do Brasil, das origens colonialistas, da distribuição das terras para famílias que compunham a elite — exemplifica Ely de Mattos, da PUCRS, que completa:
— O Brasil não fez duas coisas relevantes. Primeiro, claro, a educação: nunca conseguimos avançar de maneira consistente nisso. E isso nos leva à segunda coisa, incrementar a produtividade. Temos uma massa de trabalhadores grande, distribuída num território igualmente grande, mas são pouquíssimo produtivos por várias razões, entre elas, a falta de qualificação.
— Começamos a melhorar esse caminho ao longo das últimas décadas, tentando construir estratégias do acesso à renda. A Constituição de 1988, por exemplo, criou a vinculação do salário mínimo à aposentadoria, pensões e outros benefícios. Começamos a ter um sistema em que há um início do ideal de distribuir melhor a renda — acrescenta o sociólogo Lizandro Lui, da FGV de Brasília.
Soluções vão além de transferência de renda
Mesmo que programas sociais de transferência de renda sejam uma medida necessária e apontada por economistas e pesquisadores ouvidos nesta reportagem, todos citam que também é preciso ir além. Hoje, a principal dificuldade do Brasil é alinhar a transferência de renda com a mudança de patamar das famílias que recebem estes benefícios.
— A gente consegue pegar quem está muito vulnerável e aproximar mais do meio. Só que esse meio já é muito baixo. Temos que melhorar a renda dessas pessoas também — acredita o professor Ely Mattos, da PUCRS.
Para Ely, aperfeiçoar os programas de renda para incluir elementos de capacitação, facilitar o acesso dos beneficiados ao mercado, a empregos de maior qualidade, são pontos necessários.
— É preciso qualificar as pessoas para que consigam chegar ao nível técnico, por exemplo, e conseguir rendas maiores pelas próprias pernas. E hoje não temos isso de maneira sistemática.
Mas, como se avança, então? O economista exemplifica: se um morador da Capital que vive em situação de baixa renda resolve fazer um curso técnico, como ele consegue? Onde ele vai? Com quem ele fala? Na visão do professor, é preciso sistematizar isso e pensar também em como bonificar esse cidadão, afinal de contas ele precisa abdicar de parte da renda enquanto estuda:
— As pessoas podem se perguntar: "Mas, então, vocês querem que as pessoas ganhem para receber treinamento?". É evidente que sim, é um estímulo positivo. Tem que facilitar a vida das pessoas que precisam.
Essa facilitação vai além, segundo o professor da Escola de Negócio da PUCRS. Quando o poder público lança um programa ou iniciativa que exige das pessoas faltar ao trabalho, passar um dia numa fila ou horas ao telefone, tudo fica mais difícil para quem tem necessidades mais urgentes.
— Será que não conseguimos fazer ações sem submeter as pessoas a essas situações? Empresário nenhum fica dois dias indo numa fila no sol para receber um financiamento de fluxo de caixa — diz Ely, da PUCRS.
Mesmo que a maior parte do problema da desigualdade tenha que ser abraçado pelo Estado, com os investimentos em áreas de saúde, educação e habitação, por exemplo, também há espaço e necessidade de outros parceiros nesta caminhada, aponta o sociólogo Lizandro Lui.
Para ele, a sociedade civil precisa fazer parte dessa capacitação da massa de trabalho, apoiando organizações da sociedade civil, dando assistência às crianças e idosos, e contribuindo para uma mobilidade urbana eficiente, facilitando o deslocamento e busca por emprego destas pessoas.
— Você não pode depender de uma ferramenta só, mas de um mix. Quem vai dar apoio? Quem vai qualificar? De que forma pode se inserir melhor essas pessoas em posições melhores? Dada a complexidade, ainda há muito chão pela frente, mas muitas coisas podem ser melhoradas na janela de uma década, por exemplo.
O professor da PUCRS amplia um pouco mais o tempo de trabalho. Para ele, a redução da desigualdade e erradicação da pobreza extrema são questões geracionais, que exigem duas ou três décadas de trabalho, desde que haja realmente foco e interesse na mudança.
— Essas políticas de vamos mudar tudo da noite para o dia, não tem como. Exige tempo e investimentos — pontua Ely.
Encerrar o ciclo exige esforço desde cedo
A desigualdade pode começar durante a gestação para uma criança que ainda vai nascer. É o que pontua Luciano Nakabashi, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária do campus Ribeirão Preto (FEA/RP) da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ele, interromper a pobreza geracional — aquela de pais para filhos — pede investimentos de saúde, até mesmo focando em saúde mental, acompanhamento psicológico para as famílias. É necessário que as crianças e jovens tenham segurança de nascer, mas também crescer num ambiente seguro.
— Temos que melhorar a qualidade do acesso à escola. As pessoas têm mais acesso hoje, as diferentes classes têm, mas a qualidade para as pessoas que vão pra escola pública ainda é fraca, quando comparada às escolas particulares. Ainda, a universalização da educação, o maior acesso à saúde e os programas de transferência vão no sentido de tentar quebrar essa questão da distribuição de renda, que ainda é muito ruim no Brasil — acredita Nakabashi.
O conjunto de segurança alimentar, habitacional de educação também é apontado pelo professor da USP. Com o desenvolvimento destas crianças, vem o segundo passo, aumentar a oportunidade de qualificação desde cedo. Aumentar a oferta de oportunidades de estágio e jovem aprendiz ainda no Ensino Médio, permitindo um ingresso no mercado de trabalho ainda na adolescência. E também um trabalho com chance de renda maior e menos insalubre ou inseguro do que o enfrentado pelas gerações anteriores àquelas crianças.
— Programas sociais de incentivo à permanência dos jovens no Ensino Médio, aliados a uma política de jovem aprendiz são um caminho. Porque às vezes esse jovem quer ajudar em casa, mas precisa estudar. Se ele, durante o Ensino Médio, recebe recurso, qualificação, ele termina esse período vendo outros caminhos na vida. Além de contribuir na formação desse jovem, o que ele ganharia trabalhando, ganha estudando, se qualificando. É benefício para a sociedade como um todo. E a partir disso, opta por entrar numa universidade, ser alguém qualificado. Dentro de três a cinco anos, muda-se o patamar dessa pessoa, saindo de uma realidade onde, por exemplo, onde a profissão é vulnerável, para ter mais acesso a diferentes opções de trabalho — projeta Lizandro, da FGV Brasília.