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Desigualdade

Os desafios de moradia, lazer e educação enfrentados pela metade mais pobre do Brasil

Por um mês, o Diário Gaúcho acompanhou uma família da Capital que sobrevive com a renda média igual à de metade da população, segundo estudo do IBGE

18/08/2023 - 05h00min

Atualizada em: 18/08/2023 - 11h08min


Alberi Neto
Alberi Neto
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André Ávila / Agencia RBS
DG acompan

Por um mês, acompanhamos a família Conceição da Cruz, composta pelos pais Rogério e Roselaine. Por seus filhos Henrique, Vanessa, Amanda, Alice e Yasmim. E por um neto de três anos. A reportagem busca retratar como vivem os brasileiros que tem renda média inferior a R$ 18 por dia e por pessoa. Foi a quantia média com que 50% dos brasileiros viveram em 2022, segundo o IBGE. Esta é segunda parte da reportagem, que foi dividida em três. As outras duas partes estão aqui e aqui.

Porto Alegre orgulha-se de ser uma cidade arborizada, recheada de praças e parques. São, especificamente, 688 praças e 11 parques. Mas nenhum destes espaços está no lado sul da Ilha dos Marinheiros. E isso gera inquietude entre as filhas de Roselaine e Rogério. Quando a TV da sala volta para o controle da progenitora, logo as meninas se agitam. Querem brincar em algum lugar, mas não há este espaço. Pedem então para ir até a Rua do Beco, uma via próxima onde as crianças da região costumam se reunir para brincar.

Roselaine, entretanto, não deixa as meninas saírem, pois começa a escurecer na ilha. Sem a permissão da mãe para explorar o exterior, Aline e Amanda começam a jogar bola no meio da sala. Uma chuta, outra defende, depois se revezam. Vanessa assiste do sofá enquanto toma suco de laranja, preparado com pó para diluir na água. Ela oferece também a bebida para a reportagem com um gentil "querem suco?".

— É ruim não ter um lugar para elas irem brincar. No Pavão (ilha próxima) tem praça e tudo, mas aqui não temos nada — reclama Roselaine.

Estar longe do centro da cidade, numa área considerada periférica, não é por si só um critério de desigualdade. Segundo o professor economista e professor da Escola de Negócios da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do sul (PUCRS), Ely José de Mattos, apontar a periferia apenas como problema "é uma confusão entre sintoma e doença".

— Achamos que a periferia parece um sintoma da desigualdade. Só que esse sintoma vira pedaço da doença, porque quanto mais longe colocamos aquelas pessoas, menos enxergamos e menos fazemos por elas. Então, é preciso deixar esses locais onde elas vivem habitáveis — explica o professor, que faz uma comparação:

— Por que toda hora tem reforma na Nilo Peçanha (avenida de Porto Alegre), mas é tão difícil reformar a Lomba do Sabão? Por que é tão difícil asfaltar a vila? Porque a concentração de poder econômico está nestes locais centrais, mas precisamos olhar para o outro lado também.

Como Amanda e Aline não podem ir para a Rua do Beco, aproveitam o terreno na frente de casa, na margem do Guaíba, para ter conversas de irmãs. Empoleiradas no que já foi uma carroceria de caminhão, elas veem o movimento da água enquanto se equilibram. O que elas têm de mais próximo de uma área de lazer na Ilha dos Marinheiros é o centro social frequentado no contraturno escolar.

Campo e quadra de futebol, pracinha e salas amplas para atividades diversas fazem parte do lugar. Como é um Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), o espaço mantido pela Rede Marista sob contrato com a prefeitura funciona durante o ano todo, mesmo em período de férias escolares.

Durante o mês que passou com os Conceição da Cruz, a reportagem acompanhou uma tarde das meninas no local. A chegada, perto das 13h, é agitada. Diferentemente da escola, no centro social as irmãs são todas da mesma turma. Logo que desembarcam, a primeira parada é no refeitório, para o almoço. A refeição é importante na rotina da família, pois gera economia.

Normalmente, apenas Roselaine, Rogério e Henrique almoçam em casa durante a semana. E a refeição costuma ser singela, incluindo macarrão instantâneo, bife empanado (steak) de frango e ovo frito. O momento em que quase toda família está junta é a janta. Henrique se alimenta depois, quando chega do colégio.

No almoço do centro social, as crianças da comunidade têm acesso a frutas, verduras, legumes, carboidratos e proteínas. Atendimento integral, alimentação e espaço para conviver com outras crianças são ferramentas importantes na longa jornada contra a desigualdade. Lizandro Lui, sociólogo, professor e pesquisador da Escola de Políticas Públicas e Governo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de Brasília, observa que prestar assistência às crianças e idosos é uma maneira de dar também espaço para que os demais integrantes da família consigam prover o sustento.

— Políticas voltadas à juventude são essenciais na erradicação da extrema pobreza. Porque você tanto contribui na formação desse jovem, quanto permite que ele tenha uma realidade diferente da geração anterior à dele.

Roselaine é clara ao dizer que a única exigência que faz aos filhos é que estudem. Henrique também frequentou o centro social até os 15 anos, idade máxima atendida no espaço. Agora, enquanto se ocupa de trabalhos provisórios na ilha, espera encontrar uma oportunidade como Jovem Aprendiz em breve, trilhando um caminho diferente dos pais, que estudaram até a 4ª série, equivalente hoje ao 3º ano do Ensino Fundamental.

— Quero que eles estudem para não viver no barro, como eu vivo — compara Roselaine, fazendo referência ao terreno alagadiço do Arquipélago.

Uma casa construída com latinhas

As duas primeiras semanas do mês foram razoáveis na renda com a reciclagem. O primeiro pagamento, no dia 8 de julho, rendeu R$ 720, algo que não acontecia há tempos. Com isso, chegou a sobrar R$ 50 para usar durante a semana. Sobrar é raridade no orçamento da família. Esta verba restante Roselaine usou para comprar o frango que acompanhou a janta naqueles dias. O frango é comprado numa venda perto de casa, não exatamente a mais próxima, mas a mais barata, explicou a recicladora.

Na segunda semana, paga no dia 14 de julho, o valor foi para mais perto da média que a família vinha conseguindo obter: R$ 543. Estes são os recebimentos integrais, é preciso lembrar que R$ 250 são repassados semanalmente a Elisângela. Roselaine vai se mostrando mais inconformada com a queda no preço dos resíduos.

— A quantidade de resíduo recolhida segue alta, mas o valor só cai. As garrafas PET, que já chegaram a ser R$ 3,50 o quilo, hoje está em R$ 2. O papelão que foi R$ 1, hoje é R$ 0,30. Não dão incentivo para recicladores — lamenta ela, enquanto habilmente vai lançando os resíduos nas bags.

Nem tudo que vem pela Kombi de Rogério é separado por Roselaine e Elisângela. E nem tudo é vendido toda sexta-feira. O papelão, por exemplo, é o próprio motorista da família que separa. Assim como os galões plásticos de cinco litros.

Outros itens que também não entram na cota semanal de vendas são as latinhas e panelas de alumínio. Estas têm um destino especial. Quando há quantidade suficiente "para ganhar um dinheirinho", como diz Rogério, a carga de alumínio é colocada na Kombi e transportada até a Zona Norte de Porto Alegre, onde é vendida. O cobre tinha o mesmo destino, mas com a proibição da compra e venda deste material nos ferros-velhos por parte de prefeitura, os Conceição da Cruz perderam uma fonte de renda.

— Proibiram porque estavam roubando muito fio de cobre. O problema é que sobrou até para a gente que não rouba nada — lamenta Roselaine.

O sonho que a venda do alumínio — e antes, do cobre também — deve realizar é a casa própria da família. Um terreno adquirido na Rua do Beco é onde a obra está sendo tocada. Quem constrói é Rogério e o irmão de Roselaine, apenas aos domingos, quando o tempo está bom. O tempo não esteve muito bom em julho, mas ainda assim, está sendo possível avançar.

O foco agora é na cobertura, com a colocação das chamadas tesouras, estruturas de madeira que receberão o telhado. A casa de madeira deve ter quatro quartos, projeta Rogério. É uma mudança e tanto. Na residência atual, todos dormem juntos em um só cômodo, em duas camas. Apenas Henrique dorme na sala.

Rogério é um pouco avesso a fotografias. Henrique puxou o pai neste quesito. Durante o mês em que a reportagem acompanhou a família, os dois costumavam se esquivar das lentes do fotógrafo André Ávila. Mas, ao menos no canteiro de obras, o pai, motorista, reciclador e também construtor, se sentiu mais à vontade.

Entre marteladas e muito esforço, é ali que ele projeta a independência da família. Ter o próprio espaço não só como um todo, mas também para as meninas, para Henrique e para o casal. E ali que ele também planeja reduzir seu flerte com a acumulação. Na casa onde a família vive hoje, uma parte do pátio é ocupada com itens que poderiam ter sido descartados. Mas de onde Rogério ainda espera conseguir extrair algo.

Ele confessa que poderia ter mais cuidado, e pretende fazer isso na casa nova. Menos com relógios, esses são itens que ele não abre mão. A casa dos Conceição da Cruz é recheada de relógios de parede, todos funcionam, garante Rogério. E uma boa parte veio através dos resíduos recolhidos na cidade.

— Dá para ver a hora em qualquer lugar. E se chega alguém precisando de um relógio, sempre tenho para dar — diverte-se ele.

A casa própria na Rua do Beco é fruto do último elo com a fase anterior dos Conceição da Cruz. O terreno da casa foi comprado com um automóvel que Pedro ainda tinha, um Fiat Uno. O veículo foi dado como entrada para pagar a propriedade. Depois, o restante foi quitado com a venda das latinhas de alumínio.

O carro veio com a família de Novo Hamburgo, onde viviam até 2016. Lá, tinham casa própria e emprego fixo. Roselaine trabalhava para a indústria calçadista, cortando solados num ateliê em casa. Pedro Rogério era mecânico no setor de metalurgia. Mas, sem qualificação formal, acabou sendo substituído. Migrou por diferentes áreas, até se estabelecer atuando também como eletricista.

Nesta última ocupação, costumava viajar pelo Estado para fazer instalações em residências. Certo dia, longe de casa, um sol danado lhe aquecia a moleira. Foi quando recebeu uma ligação de Roselaine, avisando que diferentemente do cenário onde estava, em Novo Hamburgo a casa da família havia sido completamente destelhada por um temporal.

Sem chão, deu um jeito para voltar ao lar e ajudar a família. A ação não agradou muito ao chefe, a relação acabou complicada e Pedro Rogério deixou o serviço. Passou, então, a atuar junto de Roselaine no corte de solados em casa. Mas, com a crise no setor calçadista, o dinheiro sumiu e só restou a opção de buscar abrigo na Ilha dos Marinheiros, onde a família de Roselaine sempre viveu.

— Eu era a única que tinha saído da ilha, mas, no fim, voltei — recorda ela.

Na fatia inferior do Brasil, ter casa é uma garantia de segurança habitacional, como define o professor da FGV Brasília, Lizandro. Para ele, a moradia é parte da "caixa de ferramentas" que a sociedade precisa ter em mãos na hora de trabalhar contra a desigualdade:

— Nas classes mais ricas, a segurança de uma casa não é tão importante. Mas, numa família onde não a renda não é garantida, não pagar um aluguel, por exemplo, pode deixar esse grupo à mercê de morar na rua.

Um "passeio" no Centro

Roselaine está feliz na terceira semana do mês. A reciclagem rendeu R$ 549, incluindo o que ainda será pago a Elisângela. Assim como o papelão, os galões de cinco litros e os itens de alumínio, ela também vende óleo de cozinha usado como renda extra. Na semana anterior em específico, ela conseguiu R$ 18 com o produto.

Além disso, Henrique firmou no trabalho que procurou, recebendo R$ 150 por semana. Esta não é única renda do menino, ele também é beneficiado por um auxílio do governo estadual para estudantes do Ensino Médio, chamado de Todo Jovem na Escola. A bolsa é de R$ 150 mensais, mas é preciso atingir a frequência mínima de 75% na presença no mês anterior ao pagamento.

— É melhor do que nada, né. Ele pelo menos ganha para gastar com as coisas dele. Até arranjou uma namorada — conta a mãe, rindo.

Além das idas ao supermercado nas sextas-feiras ou sábados (depende do dia em que o valor dos resíduos é pago à família), são raras outras saídas de casa. Apenas para levar o neto ao médico e sacar o Bolsa Família. E é dia de sacar o benefício. Não apenas isso, também é dia de Yasmim enfim receber o tênis de aniversário, que não coube no pé no mês anterior. E de Vanessa ganhar o seu calçado, será o único presente.

A irmã mais velha da casa brinca que nunca tem festa de aniversário para ela porque não sobra dinheiro, ela nasceu num 3 de agosto. Apenas as trigêmeas e o neto festejam. Durante todo mês em que a reportagem acompanhou os Conceição da Cruz, a ida à agência da Caixa Econômica Federal (CEF), no centro de Porto Alegre, foi a única vez que alguma das meninas saiu da Ilha dos Marinheiros. É o que mais próximo elas têm de um passeio durante o mês.

O caminho até o Centro Histórico é de ônibus. A caminhada da casa da família até a beira da BR-290 é feita em passos rápidos. A sorte de Yasmim e Vanessa é que já passou do dia 18 de julho, então, elas estão em férias escolares e podem acompanhar a mãe ao Centro.

A chegada até o ônibus é de difícil acesso, passando por um caminho irregular ao lado da BR-290 até atingir a borda da pista. Às 8h34min, quando alcançam a estrada, um ônibus está saindo em direção à região central. Resta esperar o próximo. Yasmim brinca nas linhas que marcam a borda da pista, numa demonstração que ela sempre dá de sentir falta de espaços para se divertir.

Fazia 13ºC, mas pelo menos o sol amenizava o frio. Às 8h53min, um novo ônibus passou e a família embarca, agora em direção ao Centro Histórico. Às 9h15min, enfim desembarcam no terminal de ônibus embaixo do Pop Center.

O primeiro ponto de parada é a agência da Caixa. Sacados os R$ 700 que a família recebe por mês, a caminhada pelo Centro Histórico se inicia. Depois de uma breve parada na farmácia para comprar remédios para dor de cabeça e gastrite, logo as três trilham pela Rua Voluntários da Pátria em busca de um lugar para comprar os tão aguardados pares de tênis. Uma pequena loja no segundo andar de um prédio é o ponto encontrado. Logo que entra no local, Roselaine já indaga para a lojista:

— Cadê os tênis da promoção?

A promoção é a ponta de estoque, os tênis que sobraram. Não há tamanho para escolher e os valores são de R$ 39,90 e R$ 49,90 por cada par. Vanessa chega a experimentar alguns, mas conta a mãe que gostaria de um tênis sem cadarço, semelhante ao que já possui. Brinca que é o presente de aniversário e como não ganhará nada além do tênis, poderia escolher um melhor.

O coração de Roselaine não resiste ao pedido da filha, que é permitida a gastar R$ 20 além do limite da promoção, que era R$ 49,90. Assim, Vanessa conseguiu um item mais caro, de R$ 70. Yasmim ficou com um R$ 49,90 da ponta de estoque, que coube no seu pé e ela gostou. Já se foram R$ 120 do recém sacado Bolsa Família.

Saindo da loja, a família parte para o Mercado Público. Roselaine compra um pacote de espinheira santa, que segundo ela ouviu sob recomendação médica, ajuda no combate a gastrite. A próxima parada não estava no roteiro. Na saída do Mercado, um açougue onde há promoção de carnes chama atenção. O quilo da costela está por R$ 19,99. Rose entra no estabelecimento e logo pergunta pela promoção. Recebe um pedaço de costela, que lhe custam mais R$ 35,90.

Retornando para o Pop Center, é hora de passar no mercado antes de voltar para a ilha. Logo que entram num supermercado no Centro, as meninas pegam um carrinho de compras e começam a brincar, Yasmim embarca e Vanessa conduz. Enquanto isso, Roselaine pega o primeiro item de uma lista rabiscada que leva nas mãos, um desodorante roll-on de R$ 7. As meninas estão no carrinho, Rose alcança o desodorante a uma delas e logo avisa:

— Coloca embaixo ali do carrinho, se não vão achar que a gente está roubando.

Um dos produtos é devolvido para a prateleira porque não está incluso no clube que dá descontos em compras naquela rede de supermercados. Saindo do local, a família está a poucos metros da parada onde embarcará para retornar. A reportagem questiona Roselaine se a costela é para um churrasco do próximo domingo, quando enfim seria comemorado o aniversário do neto e das meninas após a chegada do Bolsa Família. Ela solta uma risada.

— Que nada, vamos na panelinha mesmo. É que estava barato, quase mesmo preço da carne moída. Churrasco é só em Natal, Ano-Novo, Páscoa e as vezes algum aniversário, mas não nesse — enumera Roselaine.

— No Dia dos Pais e das Mães também fazemos — completa Vanessa.

Dentro da média, longe do necessário

Tempo e organização fazem parte das habilidades dos Conceição da Cruz. Todos sabem a hora dos seus compromissos — os vários relógios pela casa ajudam nisso. E também sabem quando é hora de ajudar. Mesmo que exija um pouco de jogo de cintura por parte da mãe, as meninas ajudam em casa, cada uma em um dia da semana, seja dobrando roupas ou lavando a louça.

Henrique também entra na fila dos serviços, mas as irmãs deduram que ele costuma dar um jeito de escapar das obrigações domésticas. A habilidade organizacional parece estar ligada à sabedoria de viver no limite, controlando cada real que entra em casa e buscando a melhor maneira de adaptá-lo. Mas, mesmo com tudo tão contado, há espaço para sonhar. Assim como Roselaine e Rogério estimulam os filhos a estudar, eles respondem com planos para o futuro. Vanessa, a mais velha que ainda mora com os pais, quer ser professora. Yasmim sonha em cuidar de animais, sendo médica veterinária, enquanto Aline pensa em ser advogada.

Amanda e Henrique têm um sonho mais brasileiro: jogar bola. O menino chegou a fazer escolinha num clube da Capital em épocas de vacas mais gordas, mas hoje não consegue mais custear o sonho. Amanda flerta com o esporte apenas no centro social, onde joga entre os meninos. E de vez enquanto, também na sala de casa.

A conversa foi durante a última visita aos Conceição da Cruz, na primeira semana de agosto. Enquanto jantavam, as meninas projetaram o seu futuro. Na cozinha, Roselaine tinha caprichado: arroz, feijão, frango ao molho de tomate e cebola, e batatas cozidas. O verdureiro havia passado pelo bairro no dia. Roselaine compra cerca de R$ 60 em verduras por semana, tudo anotado no caderninho do comerciante e pago no final da semana, quando a renda da reciclagem chega.

Amanda ainda estava com desejo de comer enroladinhos de salsicha, dos quais a mãe, então, ajudou na confecção. A menina pegou cinco salsichas e enrolou no mesmo número de pastelinas.

— Agora, corta eles ao meio, vai render o dobro — indicou Roselaine.

Enquanto preparava a janta, Roselaine debatia com a reportagem sobre o acompanhamento feito durante o mês. Recordou que além da renda, conta com algumas doações pontuais de entidades sociais ou religiosas da Ilha dos Marinheiros. Uma cesta básica aqui, um quilo de alimento ali, um pacote de massa acolá. De pouco em pouco, estes alimentos são essenciais para que a fome não seja algo que assola os Conceição da Cruz.

— Não sobra dinheiro, é tudo contado. Mas a gente vive bem dentro do possível, tem comida, tem trabalho. Outras pessoas estão em uma situação pior, mais difícil, né — diz Roselaine.

A última semana do mês foi a pior na reciclagem. Os resíduos rendaram apenas R$ 450. Com a parte de Elisângela paga, restou apenas R$ 200 para as compras da semana.

Somada só à venda da reciclagem durante o mês, a família recebeu R$ 2.262. Dividido pelos sete membros da família — como o neto recebe ajuda de Graziele, não entrará na conta —, foram cerca R$ 10,77 por pessoa ao dia. Ainda distante dos R$ 17,90 que o documento do IBGE mostrou. Isso colocaria os Conceição da Cruz na camada dos 10% a 20% mais pobres do país.

O cenário muda com as demais rendas. São os R$ 700 do Bolsa Família, os R$ 150 recebidos por Henrique do Todo Jovem na Escola e os R$ 600 mensais que o novo trabalho informal do garoto trouxe. Tudo isso coloca a renda do mês dos Conceição da Cruz em R$ 3.715, o que deu R$ 17,69 por pessoa ao dia. Alguns centavos ainda distantes, mas bem perto da média com que a metade mais pobre da população viveu diariamente no ano passado. Porém, mais distante ainda do mínimo necessário para viver com mais tranquilidade.

— Espero que o preço do resíduo volte a crescer. Hoje, está muito difícil, chega a desanimar a gente do trabalho — deseja Roselaine.

A expectativa dos Conceição da Cruz pode virar realidade nos próximos meses. É que o governo federal aprovou o aumento da alíquota de importação para plásticos, vidros e papel. O plástico, que tinha taxa de 11,2%, passou a ter a importação taxada em 18%. Vidros e papel passam a ter uma taxa de importação de 18% — até o final de julho, essa taxa era de 0%.

As alíquotas eram uma grande reclamação dos catadores. Isso porque as importações estavam tomando espaço do mercado interno, fazendo os preços caírem e prejudicando os trabalhadores. Só entre 2019 e 2022, por exemplo, as compras externas de resíduos de papel e vidro subiram respectivamente 109,4% e 73,3%. As novas alíquotas estão valendo desde o dia 1º de agosto.

Antes da despedida da última visita, a reportagem foi convidada para compartilhar o jantar com a família. Acompanhamos o preparo da refeição, mas agradecido o convite, nos despedimos.


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