Cheia do Guaíba
Enchente nas ilhas retira de casa família que DG acompanhou em julho
Em reportagem especial sobre os 50% mais pobres da população, família Conceição da Cruz foi personagem. Com cheia do Guaíba, grupo perdeu fonte de renda e não sabe quando voltará para casa
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Mesmo mais longe do Guaíba, a família Conceição da Cruz seguia cercada pela enchente no início da tarde de terça-feira, dia 26. Isso porque o pátio da Escola Estadual Alvarenga Peixoto, que servia de abrigo, fora tomado por água que chegava quase na altura dos joelhos. A instituição fica na parte central da Ilha dos Marinheiros, no bairro Arquipélago, em Porto Alegre. E com a subida do Guaíba, a água começou a retornar pela rede pluvial. Ao menos nos dois pavilhões onde cerca de 40 pessoas estavam abrigadas, o piso seguia seco.
Numa das salas de aula, Roselaine Ayres da Conceição, 48 anos, dividia espaço com outras 12 pessoas. Entre elas, as quatro filhas: as trigêmeas Amanda, Aline e Yasmim, 13 anos, e Vanessa, de 14. O neto de dois anos também estava abrigado ali.
Entre os que moram na casa da família, na Rua Nossa Senhora Aparecida, apenas o filho mais velho, Henrique, 16 anos, está em outra residência. O pai da família, Pedro Rogério Telles da Cruz, 54 anos, ficou no lar dos Conceição da Cruz, mesmo com a água atingindo a altura da porta na terça à tarde — a residência é elevada em ao menos meio metro, já pensando no histórico de enchentes da região.
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Os Conceição da Cruz foram personagens do Diário Gaúcho em agosto. Por um mês, a reportagem acompanhou a rotina do grupo, que vivia a realidade de metade da população brasileira, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dados divulgados em maio deste ano apontavam que 107 milhões de brasileiros sobreviveram com uma média de R$ 17,90 por dia em 2022. São R$ 537 mensais por pessoa. A família Conceição da Cruz embarcava neste coletivo.
Eles faziam parte dos mais de 100 milhões de brasileiros que compõem os 50% da camada mais pobre da população. Faziam, porque, de um dia para o outro, tudo se esvaiu. A força do Guaíba tomou o pátio e impediu o trabalho com a reciclagem, de onde vem a principal renda do grupo. Não bastasse, antes da chegada da água, a Kombi usada para recolher os resíduos recicláveis teve um problema no motor, que chegou a ser consertado. Mas isso serviu apenas para estacionar o veículo numa área mais alta, longe da enchente.
— Juntando o tempo do conserto e a enchente, estamos sem conseguir trabalhar há pelo menos um mês — contou Roselaine na tarde de terça, na entrada sala de aula onde estava abrigada.
Família foi abrigada em colégio
Um tanto alheias ao problema, as filhas de Roselaine se divertiam pelo local. Sem o ardor da vida adulta, não entendiam bem o problema que uma enchente traz. E, por isso, passar alguns dias com outros pequenos, jogando partidas de Uno e tabuleiros, e com as aulas interrompidas, parecia algo convidativo.
Com isso, Aline, Amanda e Yasmim se empoleiravam ao redor da mãe para contar das aventuras dos quase 10 dias vivendo na escola onde, normalmente, só iam para assistir aulas. A única preocupação era com Pig, o pequeno cachorrinho da família, que ficou ilhado junto de Pedro Rogério.
— Quero trazer ele para cá — protestava Aline, sentada no colo da mãe.
Os animais de estimação não eram permitidos no abrigo, por isso, Pig ficou com Pedro Rogério. Na sala de aula, a irmã mais velha, Vanessa, dormia em um colchão colocado no piso. Uma pequena TV encravada no meio de vários cobertores transmitia a reprise de uma novela, mas ninguém assistia.
Os olhos estavam voltados para a água que levemente avançava no pátio da instituição. Entre idas e vindas molhando as canelas, moradores buscavam itens no colégio, que além de abrigo para quem saiu de casa, serve como ponto de atendimento da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc).
Casa dos Conceição da Cruz foi tomada pela água
Cerca de duas horas de conversa depois, a reportagem de despediu de Roselaine e das meninas. A ideia então era ir ao encontro de Pedro Rogério, que guarnecia a casa dos Conceição da Cruz. Roselaine advertiu que seria um caminho difícil, pois nem a própria família tinha conseguido voltar até a residência desde o dia em foram resgatados pela Defesa Civil e levados numa caminhonete até o colégio Alvarenga Peixoto.
— Á agua está batendo na porta da casa. Mas, na rua, deve estar chegando quase na altura do peito — disse Roselaine.
O primeiro trecho do caminho foi feito em passos lentos e molhados. As botas usadas por repórter e fotógrafo logo não venceram a elevação e se encheram de água. No mês em que o DG passou com os Conceição da Cruz, em julho, aquele mesmo caminho tinha sido feito diversas vezes, de carro e também a pé. E molhar os calçados nunca foi algo que parecia possível, mesmo tão próximo do Guaíba. Mas agora era.
Enquanto muitos moradores faziam o caminho contrário, o DG seguia em direção ao norte da ilha. Cerca de 100 metros depois, uma parte mais elevada estava seca. Dali, partiam os barcos para buscar moradores no novo trecho alagado. E foi com a ajuda de um destes navegantes que se tornou possível alcançar a residência dos Conceição da Cruz.
Com um macacão impermeável que lhe cobria quase todo o corpo, Léderson da Rosa, 35 anos, enfrentava com certa tranquilidade as águas que tomavam a Ilha dos Marinheiros. Em pontos com menos vegetação entre o que era o curso natural e a pista, um forte vento soprava. De dentro da água que lhe alcançava o abdômen, Léderson puxava a pequena embarcação com repórter e fotógrafo, enquanto contava sobre como acostumou-se com as cheias.
— Fazia tempo que não subia tanto, mas é algo que a maioria aqui já enfrentou em outros anos — recordou, principalmente, pontuando a enchente de 2015, que também assolou a região das ilhas.
Logo, a casa dos Conceição da Cruz apareceu ilhada. Ainda havia resíduos no espaço onde normalmente Pedro Rogério descarregava a Kombi. Mas no resto do pátio, quase tudo foi levado. Assim que viu a reportagem, o pai dos Conceição da Cruz logo desabafou. Avesso a entrevistas no período em que o DG acompanhou a família em julho, desta vez, ele estava preocupado e queria compartilhar isso.
A energia elétrica havia sido desligada. E o pequeno cãozinho Pig estava atônito, parado na porta da casa junto de Pedro Rogério, parecia querer pular no barco e voltar para terra firme junto com a reportagem. O reciclador falou bastante sobre a enchente e mostrou o interior da residência, onde a água entrava numa parte mais baixa.
— Só consegui salvar as latinhas, que joguei ali em cima do telhado — apontava ele.
Latinhas custeiam obra da casa própria
As latinhas de alumínio são os itens com melhor preço entre a venda de recicláveis. E é com o lucro delas que a família constrói a casa própria numa rua próxima. A atual residência pertence a mãe de Roselaine. No novo local, pelo menos, a água não chegou, apenas numa pequena parte do pátio. Foi o primeiro teste da casa ainda inacabada. As telhas que seriam usadas para a cobertura, entretanto, ficaram dentro da água. A esperança de Rogério é conseguir salvar algo quando o Guaíba recuar.
— Queria terminar a casa nova, mas ficou mais difícil. É uma tristeza essa enchente, chega a desanimar — contou Rogério na porta de casa.
O cenário era desolador, mas a casa ainda parecia segura na tarde de terça-feira. A situação mudou durante a madrugada. Na manhã de quarta-feira, Roselaine escreveu a reportagem que “a água subiu rápido e chegou quase à metade da altura da casa”, seguindo com um triste mantra repetido por quem sofre com desastres naturais: “Perdemos tudo”. Pedro Rogério estava bastante chateado, parecia a ele que o tempo passado na casa, guarnecendo o espaço, havia sido praticamente em vão. Com a subida repentina do Guaíba, pouco pôde fazer para salvar algo.
Roselaine, as filhas e o neto também precisaram ser retirados da escola Alvarenga Peixoto. A água que antes ocupava apenas o pátio começou a ameaçar também a área dos abrigados. Na manhã de quarta-feira, todos foram embarcados em um ônibus e levados para o abrigo do Departamento Municipal de Habitação (Demhab), no bairro Santana. Seguiam lá até esta sexta-feira, sem previsão de voltar para casa.
Também por mensagem, a reportagem questionou a Roselaine se a água havia recuado, assim como na região central da cidade, depois de o Muro da Mauá ser testado pela primeira vez desde a construção:
— Esse rio está louco. Eu acho que ele sobe e desce do nada, só para levar as coisas da gente embora.
Água baixou na região central, mas não nas ilhas
Na manhã de sexta, o nível Guaíba no Cais Mauá era de 2m73cm. Nas ilhas, os alagamentos persistem enquanto a cota estiver acima dos 2 metros. Pedro Rogério seguiu na Ilha dos Marinheiros.
A expectativa é poder recomeçar, por todos os lados. Na reciclagem pelo sustento, na obra na casa própria para buscar um lar mais seguro, na reestruturação da casa onde moram hoje para que haja o mínimo de dignidade, e também nos espaços de educação dos filhos.
O centro social que as meninas frequentavam no contraturno foi tomado pelas águas. Na jornada de reconstrução, os Conceição da Cruz torcem apenas para que o Guaíba não suba de novo e de repente, “só para levar as coisas embora”.