Mato do Júlio
Entenda o impasse sobre zoneamento de área florestal em Cachoeirinha
Está em debate mudança no Plano Diretor que permitiria urbanização de parte da floresta de mais de 250 hectares, mas moradores defendem a conservação. Ministério Público acompanha o caso desde 2019
Um grupo de moradores de Cachoeirinha tem se mobilizado em prol da preservação de um bem natural do município. O Mato do Júlio é uma área florestal de mais de 250 hectares que abriga fauna e flora nativas e teve papel importante na contenção de parte da enchente em maio. Em dezembro, foi feita uma proposta de alteração no texto do Plano Diretor Municipal que pode permitir o uso de um trecho do local para ocupação comercial e residencial.
Na intenção de, literalmente, fazer barulho sobre o assunto, o Coletivo Mato do Júlio convocou um buzinaço em frente à prefeitura e um abraço simbólico ao mato no final do ano passado. A associação surgiu em 2020, quando começaram discussões sobre urbanização no terreno, e atua em defesa da floresta e promovendo educação ambiental na cidade desde então. O coletivo estima que 400 pessoas estiveram presentes no dia do abraço, entre moradores e apoiadores da causa.
Uma delas foi o metalúrgico Elenilso Portela da Silva, 49 anos, representante da Comissão de Moradores do Parque da Matriz, bairro colado à floresta. Ruas e casas foram alagadas durante a enchente de maio, assim como em outros dias de chuva forte, por causa da elevação do Arroio Passinhos. O curso d'água passa por dentro do mato, contorna o bairro e deságua no Rio Gravataí. Ele explica que a comissão foi criada para cobrar melhorias no escoamento de água e na proteção contra cheias, do qual os moradores entendem que o Mato do Júlio faz parte.
— Nós também fomos na reunião do Plano Diretor e deixamos registrado em ata, enquanto comissão, que era importante que fosse feito um estudo e as obras de contenção, e depois o estudo para modificar o Mato do Júlio ou não — destaca.
O coletivo fez um cruzamento de dados do MapBiomas com dados da Defesa Civil de Cachoeirinha e concluiu que o Mato do Júlio foi responsável por absorver 35% da água que choveu em 4 de maio, um dos dias com maior quantidade de chuva. A organização estima que em torno de 6 mil a 8 mil pessoas poderiam ter sido afetadas por esse montante, caso não tivesse sido retido.
— Ali foi um divisor de águas na nossa vida em questão de florestas urbanas. Se o mato foi tão importante, porque não deixar como está? Nós estamos receosos e com medo, a cada chuva que vem, a gente não dorme. Essa intervenção que querem fazer pode piorar nossa situação. Entendemos que o poder público tem que fazer um projeto viável que leve em conta as questões técnicas e científicas que deixe o mato do jeito que está — enfatiza Elenilso.
O Mato do Júlio está localizado, nas extremidades, entre a Avenida Flores da Cunha, principal via do município, e a Freeway. Nas laterais ficam o bairro Parque da Matriz e o bairro Vila Cachoeirinha. A mata abriga os biomas Pampa e Mata Atlântica, além de uma espécie de animal extinção, o gato-do-mato. A região também tem relevância histórica: no interior da floresta está erguida a Casa dos Baptista, residência que deu início a cidade e é tombada pelo município, além de um Sítio Arqueológico reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Até hoje, a área pertence aos herdeiros do primeiro proprietário do terreno.
— Desde 2019, lutamos no Ministério Público para que se cumpra o parágrafo único do art. 154 da Lei do Plano Diretor, que diz que o município deve realizar pesquisas ambientais e audiências públicas sobre o Mato, mas o que estamos vendo é o contrário: sucessivas tentativas de atropelar a lei municipal em prol de interesses de grupos imobiliários. O zoneamento será uma parte disso, fugir do cumprimento da lei, pois sabem que se a lei for cumprida como deve ser a área vai virar uma Unidade de Conservação — declara Leonardo da Costa, ambientalista, líder do Coletivo Mato do Júlio e vereador eleito em 2024.
Leonardo cita que a luta pelo Mato do Júlio compreende o desenvolvimento ecológico da floresta e defende a criação de um parque histórico-ambiental, que seria "um dos maiores pontos turísticos e de memória gaúcha do Estado":
— A estrutura toda poderia se manter apenas com o valor das entradas, tendo em vista que em Cachoeirinha, Gravataí e zona norte de Porto Alegre não tem áreas de lazer, o mato é uma área central para mais de 500 mil pessoas.
Plano para mudar aspecto da região
O Plano Diretor de Cachoeirinha foi criado em 2007. Nele, consta que o Mato do Júlio é uma Área de Especial Interesse Ambiental e, dentro de um ano, deveria passar por um estudo técnico de iniciativa do Poder Executivo para determinar suas características e verificar a viabilidade de criação de Unidade de Conservação de Proteção Integral ou de Unidade de Uso Sustentável. A determinação não foi cumprida no prazo estipulado, e uma avaliação da floresta só foi entregue em 2019 pela prefeitura. No entanto, o Ministério Público identificou inconsistências no documento.
A proposta apresentada no ano passado pelo presidente do Conselho Municipal do Plano Diretor, André Lima de Moraes, muda três pontos do texto. Um é a responsabilidade pela encomenda do estudo, que passaria a ser dos proprietários da terra, sob supervisão e análise do Poder Público Municipal. O segundo é a inclusão "das questões atinentes a mobilidade, econômicos e sociais" a serem consideradas na análise da área. Por fim, a proposta acrescenta o "zoneamento urbano" como opção entre as possibilidades de uso do Mato do Júlio. As mudanças têm como objetivo final a utilização de 15% da área para a construção de um corredor de 300 metros de largura e 1,2 km de comprimento no trecho mais próximo à Avenida Flores da Cunha.
André, líder do projeto de urbanização, defende que o desenvolvimento da parte mais próxima à avenida pode trazer benefícios econômicos e de mobilidade para a região. O projeto idealiza três quadras de ocupação residencial e comercial e uma avenida paralela à Flores da Cunha, que ligaria a Vila Cachoeirinha ao Parque da Matriz. A obra seria uma "contrapartida" realizada pelo investidor que quiser construir na região.
— Até o prédio da prefeitura (que fica ao lado mato) tem desenvolvimento dos dois lados da avenida, depois é tudo morto, o motorista que passa nem olha para o comércio do lado esquerdo. Isso vai dar uma nova cara para a cidade, para perder esse ar de cidade dormitório — destaca.
O presidente do conselho ressalta, ainda, que "zoneamento não é licenciamento" e que os empreendedores interessados na ocupação deverão cumprir com as leis ambientais. Ele acredita na "vocação comercial e residencial" do espaço "para aproveitar o eixo da Flores da Cunha". Lima completa que o objetivo de passar para os proprietários a responsabilidade pela realização do estudo, como colocado na proposta, é "dar mais transparência e agilidade" ao processo.
— O zoneamento diz o que tu podes construir, mas não faz nada por ti. No momento que o Plano Diretor disser que ali é zoneamento urbano, não estamos dando permissão pra descampar tudo, não vão entrar mata a dentro, vai ser tudo preservado nessa primeira mexida — declara.
Até o final de fevereiro deve acontecer uma reunião do conselho para ouvir as propostas da Associação dos Geólogos, Engenheiros e Arquitetos de Cachoeirinha e, depois, um encontro para a deliberação do estudo. Em seguida, deve ser convocada uma audiência pública.
A Habitasul, empresa dona de 28% do terreno, informou que prefere não se manifestar sobre o tema. A reportagem não conseguiu contato com os outros proprietários.
Ministério Público acompanha discussões sobre o mato
Michael Flach, promotor do caso, reitera que o Ministério Público está atuando para impedir o loteamento da área do Mato do Júlio e defende a utilização do local como um parque e um museu. O advogado acrescenta, ainda, que se for identificado algum malefício ao ambiente e à sociedade na proposta de zoneamento urbano, o MP poderá "barrar" o processo.
— Essa área tem vocação para a preservação e, se possível, queremos elevar o nível de conservação dela. Vamos trabalhar o máximo possível pela preservação social da Casa dos Baptista, do mato e em interesse da comunidade, para que a população possa usufruir da região — defende.
Desde 2019, quando houve a primeira tentativa de alteração no Plano Diretor de Cachoeirinha, há um processo em andamento no Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) para "acompanhar as questões envolvendo a preservação" do Mato do Júlio, "em relação a possível implementação de empreendimento imobiliário sobre a área".
À época, foi marcada uma audiência pública para discutir o zoneamento do Mato do Júlio, com base em um estudo técnico realizado pelos proprietários do terreno. O MPRS expediu uma recomendação para a suspensão da audiência tendo em vista a inconformidade com a lei do Plano Diretor, que determina que o estudo técnico deveria ser de iniciativa do Poder Executivo para avaliação da criação de Unidade de Conservação, e não de urbanização do mato.
A audiência foi realizada mesmo assim. A partir disso, foi protocolado o Projeto de Lei n° 4.46/2020, que alteraria o Plano Diretor com o objetivo de criar o zoneamento. Entretanto, devido à eclosão da pandemia de covid-19 e a orientação de distanciamento social, o processo foi suspenso.
Apesar da suspensão do projeto de lei, o Poder Executivo manifestou de forma expressa a recusa em realizar o procedimento previsto no Plano Diretor para verificar a viabilidade de criação de algum tipo de Unidade de Conservação no local. Diante disso, o MP expediu nova recomendação para a prefeitura realizar o estudo. Foi nomeada uma comissão municipal para tratar do assunto e uma empresa foi contratada para a elaboração do trabalho. A pedido do MP, o município de Cachoeirinha apresentou os documentos referentes à contratação, que tiveram parecer desfavorável pelo Gabinete de Assessoramento Técnico do órgão.
Em dezembro de 2024, o Ministério Público oficiou à prefeitura de Cachoeirinha que informasse se está sendo realizado o estudo técnico no Mato do Júlio. Até o fechamento desta reportagem, o município não havia respondido à solicitação.
Produção: Caroline Fraga