Tradição dos gaúchos
O que está por trás do chimarrão: história, mitos e como preparar o mate "perfeito"
Mais que um hábito, a bebida mistura rituais e segredos de preparo que atravessam gerações


É quase impossível imaginar um 20 de Setembro sem o chimarrão na mão. Entre desfiles, cavalgadas e encontros em piquetes, a cuia passa de gaúcho em gaúcho como um gesto de confiança e pertencimento, um ritual que atravessa séculos.
Mais do que bebida quente, o mate é também hospitalidade, conversa e tradição — a ponto de ter até regras próprias de etiqueta, reunidas nos divertidos "10 mandamentos do chimarrão", da Escola do Chimarrão, em Venâncio Aires (veja abaixo).
Mas a história começou muito antes de virar símbolo dos gaúchos: foram os guaranis que primeiro mastigaram as folhas da erva-mate em busca de energia, antes até de os jesuítas escreverem sobre o hábito nos livros.
De lá para cá, o mate atravessou fronteiras, ganhou novos significados e ganhou fama nas redes sociais, onde diferentes técnicas e versões conquistam espaço.
Zero Hora mergulhou nesse universo para mostrar de onde vem o chimarrão, quais são os segredos do preparo "perfeito" e até para esclarecer dúvidas que surgem todos os dias no Google. Veja o que a gente te conta nessa matéria:
Qual é a origem do Chimarrão?
O chimarrão tem pelo menos cinco séculos de história registrada, mas suas raízes são ainda mais antigas. Povos indígenas, especialmente os guaranis, foram os primeiros a mastigar as folhas da erva-mate (Ilex paraguariensis) e a utilizá-las em infusões.
— A história conta a partir de 500 anos para cá, porque ela começa a ser escrita à medida que chegam os jesuítas espanhóis, que começam a catequizar os povos indígenas. Mas é sabido que muito antes de chegarem os espanhóis, os originários já tomavam o chimarrão — explica Luís Fernando Rodrigues, diretor-executivo da Escola do Chimarrão.
No século 17, o consumo chegou a ser proibido pelos missionários jesuítas, que viam no hábito um vício, chamando-a de "erva do diabo". Pouco tempo depois, porém, os próprios religiosos passaram a incentivar a bebida como alternativa ao álcool.
— Os povos indígenas trouxeram não só a bebida, mas até adaptações de vestes para o trabalho com o gado. Foi essa mistura cultural que fixou o chimarrão como símbolo. A gente diz que ele tem 500 anos de história contada, mas muita coisa não se fala porque quem registrou foram os europeus quando chegaram ao Brasil — acrescenta Rodrigues.
Nesse movimento de encontros e trocas culturais, o chimarrão se consolidou como parte da rotina do gaúcho. Tanto que, em 2003, a tradição foi oficializada em lei: 24 de abril passou a ser celebrado como o Dia do Chimarrão e do Churrasco.
É justamente nesse esforço de preservar e transmitir a cultura que surgiu a Escola do Chimarrão, em Venâncio Aires, no Vale do Rio Pardo, considerada a terra da bebida. Criada há 28 anos, a iniciativa nasceu para aproximar a comunidade do hábito e mostrar que não tem mistério preparar um bom mate.
— Inicialmente, o objetivo era conquistar novos apreciadores e incentivar o consumo. Criamos uma exposição que levamos até hoje, para provocar perguntas e despertar curiosidade. Com o tempo, também buscamos pesquisas que mostrassem os benefícios da erva-mate, tanto nutricionais quanto medicinais — resume Rodrigues, que está em turnê com a escola pelo Estado para celebrar o mês Farroupilha.
Cuia, erva e bomba
Se a história ajuda a entender a importância cultural, são os utensílios que dão forma ao chimarrão. Por isso, a Escola do Chimarrão costuma iniciar suas oficinas apresentando a tríade básica: cuia, erva e bomba. Cada um desses elementos tem particularidades que influenciam no sabor, na durabilidade e até na estética da bebida.
As cuias podem variar do tradicional porongo às versões modernas em porcelana, madeira ou inox. O formato também interfere: cuias mais fundas ou de "pescoço" longo facilitam o preparo, enquanto as uruguaias, menores, são usadas para consumo rápido, antes que a água esfrie.
Na erva, entre os tipos mais comuns estão a moída grossa, de sabor mais intenso; a nativa, colhida em habitat natural e de amargor suave; a pura folha, preferida em países vizinhos e mais amarga; e a tradicional, cultivada especialmente para o mate e bastante consumida no Rio Grande do Sul.
Já a bomba exige maior atenção. Os modelos em aço inoxidável são os mais recomendados, porque não alteram o gosto da bebida. E a limpeza é fundamental para evitar entupimentos, detalhe que costuma gerar dúvidas e até alguns mitos nas rodas de mate.
— Depois que se tira a erva da cuia, o certo é direcionar a bomba direto no jato da torneira. A água deve entrar pelo filtro e empurrar as partículas de erva em direção ao bocal, e não o contrário, como muitos fazem ao jogar água pelo bocal — explica Rodrigues.
Chimas como um hábito
O chimarrão é também um ritual. Ele pede paciência até etiqueta própria. Quem já tomou mate em grupo sabe: existem regras não escritas que todo gaúcho aprende cedo.
Entre elas, estão advertências que todo mateador conhece: não mexer na bomba, não pedir açúcar no mate, não deixar a cuia pela metade e, por óbvio, não dormir com a cuia na mão, um deslize capaz de interromper a roda inteira.
As regras, embora carreguem uma pitada de humor, reforçam o que o chimarrão representa: convivência, respeito e partilha.
— O chimarrão é um hábito saudável, mas também é um comportamento social. Num tempo em que o celular virou parte da nossa roupa, o mate ainda nos obriga a parar, sentar em roda com a família, amigos ou colegas de trabalho. É a manutenção desse momento de convívio que a gente precisa preservar — destaca Rodrigues.
Confira os 10 mandamentos do chimarrão, segundo a Escola:
- Não peças açúcar no mate
- Não digas que o chimarrão é anti-higiênico
- Não digas que o mate está quente demais
- Não deixes um mate pela metade
- Não te envergonhes do "ronco" no fim do mate
- Não mexas na bomba
- Não alteres a ordem em que o mate é servido
- Não durmas com a cuia na mão
- Não condenes o dono da casa por tomar o primeiro mate
- Não digas que o chimarrão dá câncer na garganta
Como fazer o "chimarrão perfeito"
A Escola do Chimarrão ensina que a ordem faz diferença e que detalhes evitam erros comuns, como o mate entupido ou o sabor "lavado" logo nas primeiras cuias.
Segundo Rodrigues, dois cuidados são fundamentais para montar o chimarrão ideal: não colocar erva em excesso no fundo da cuia e manter a bomba bem lavada.
O processo começa enchendo a cuia com erva até a altura do pescoço. Em seguida, ela é inclinada para formar o chamado "morro", espaço vazio onde a água será colocada. Primeiro vai a água morna, que "ceva" a erva e ajuda a fixar o formato.
Depois vem a bomba, posicionada com cuidado na lateral da cuia. Só então se completa com água quente, entre 70 °C e 75 °C, a temperatura ideal para preservar o sabor e evitar queimar a erva.
Assim, o resultado deve unir estética e funcionalidade: um chimarrão que seja bonito de oferecer e, ao mesmo tempo, "puxe" bem, sem exigir esforço para sorver.
Veja o passo a passo:
- Encha a cuia com erva até a altura do pescoço (cerca de dois terços).
- Forme o "morro": incline a cuia para que a erva se concentre de um lado e crie espaço vazio do outro.
- Ceve a erva despejando um pouco de água morna nesse espaço, para firmar o formato.
- Coloque a bomba com cuidado, posicionando o bico na lateral da cuia até o fundo.
- Complete com água quente, entre 70 °C e 75 °C, a temperatura ideal para preservar o sabor e não queimar a erva.
Mitos e verdades do mate
O chimarrão também acumula rituais, crenças e até alguns mal-entendidos. Enquanto uns viraram folclore, outros mitos ainda circulam nas rodas, como bem destaca Rodrigues:
— Um mito bem notório é a ideia de que precisa tampar o bocal da bomba com o dedo para não entupir. Isso não é verdade. O fato de tapar ou não, não interfere no funcionamento — explica Luís Fernando Rodrigues. Outro costume frequente é usar filtros ou "camisinhas" na bomba, recurso que, segundo ele, acaba sendo desnecessário quando o preparo é feito corretamente.
A temperatura da água também gera debate. Há quem defenda ferver, mas a recomendação é clara: acima de 75 °C, a erva queima, o sabor se perde e o risco à saúde aumenta.
— A Organização Mundial da Saúde indica em torno de 65 °C. Nós trabalhamos entre 70 e 75 °C, variando conforme a estação. No verão, 70. No inverno, 75 — diz Rodrigues.
As principais dúvidas também aparecem na internet. Basta uma busca no Google para encontrar perguntas recorrentes dos usuários: chimarrão faz mal? Tem álcool? Engorda? Pode tomar à noite?
Para esclarecer essas questões, a nutricionista Juliana Bueno respondeu ponto a ponto.
— O chimarrão não tem álcool na composição. A erva-mate é só a planta Ilex paraguariensis, pura. Essa é uma dúvida muito comum, porque algumas pessoas confundem com bebidas prontas de mate, que aí sim podem ter açúcar e conservantes — explica.
Outro tema que gera busca é o risco de câncer. O que pode prejudicar não é a erva em si, mas a temperatura da água muito quente, que irrita a boca e a mucosa da garganta.
Ao contrário, a erva-mate tem propriedades importantes: é anti-inflamatória, antioxidante que gera proteção celular, fortalece as defesas do organismo e até tem ação anticancerígena, afirma Juliana. A questão da cafeína também aparece nas pesquisas. A nutricionista orienta moderação:
— A cafeína presente no chimarrão tem efeito estimulante, ajuda no metabolismo e pode até acelerar a queima de gordura. Mas em excesso pode causar palpitações e irritar o estômago. Por isso, o ideal é consumir com moderação e evitar depois das 18 horas, para não atrapalhar o sono.
Os diferentes tipos de mate nas redes sociais

Embora o preparo no modo tradicional seja o mais pedido, o chimarrão também dá espaço para a criatividade: nas redes sociais, especialmente no TikTok, circulam vídeos que reinventam o ritual, com cuidas enfeitadas com flores, mates doces com açúcar ou mel, versões misturadas com chás e até experimentos com frutas.
A Escola do Chimarrão lembra que a base é sempre a mesma, cuia, erva, bomba e água quente na temperatura certa. É claro que as variações nem sempre agradam os mais conservadores, mas ajudam a reforçar a vitalidade do hábito. Afinal, se o chimarrão atravessou séculos, foi justamente por sua capacidade de unir história, convívio e reinvenção. Veja abaixo algumas criações dos usuários.
Perguntas e respostas sobre o chimarrão
Chimarrão é considerado saudável?
Sim. A erva-mate tem ação anti-inflamatória, antioxidante, fortalece as defesas do organismo e até tem efeito anticancerígeno. É um alimento funcional, reconhecido no mundo inteiro, explica a nutricionista Juliana Bueno.
Chimarrão tem álcool?
Não. A erva-mate é apenas a planta Ilex paraguariensis. A confusão vem de bebidas prontas de mate industrializadas, que podem ter açúcar, conservantes e outros aditivos.
Chimarrão dá câncer de garganta?
O risco está no uso de água muito quente, acima de 75 °C, que irrita a boca e a mucosa da garganta. O preparo correto, entre 70 °C e 75 °C, mantém as propriedades da erva e evita o problema.
É verdade que precisa tampar o bocal da bomba para não entupir?
Mito. O fato de colocar ou não o dedo não interfere no funcionamento, explica Luís Fernando Rodrigues. O segredo é não exagerar na erva no fundo da cuia e manter a bomba bem lavada.
Precisa usar filtro ou "camisinha" na bomba?
Não. Segundo Rodrigues, quando o chimarrão é preparado corretamente, não há risco de entupir. O acessório muitas vezes é usado de forma inadequada e acaba prejudicando a experiência.
Chimarrão engorda?
Não. Ao contrário, pode auxiliar na digestão e acelerar o metabolismo por causa da cafeína. O que pode engordar são variações adoçadas.
Pode tomar chimarrão à noite?
Melhor evitar. Por conter cafeína, pode atrapalhar o sono se consumido depois das 18h.
Chimarrão é chá?
Não exatamente. No chá, as folhas ficam em infusão e depois são retiradas. No chimarrão, a erva permanece na cuia e é consumida junto com a água a cada gole.
Qual a diferença entre chimarrão e tererê?
A base é a mesma, mas o tererê é preparado com água gelada e costuma vir misturado a outras ervas ou frutas, como limão e boldo.
A água precisa ferver?
Não. Ferver queima a erva, altera o sabor e reduz os benefícios. O ideal é manter entre 70 °C e 75 °C, como recomenda a Escola do Chimarrão.
Preciso botar muita erva na cuia?
Não. Colocar erva demais aumenta o risco de entupir e prejudica o fluxo do mate.
Chimarrão precisa ser doce para durar mais?
Mito. O que prolonga a cuia é a temperatura correta da água e a escolha da moagem adequada da erva, como a moída grossa, que resiste mais tempo.