DELAS
Cerveja artesanal de Novo Hamburgo tem gosto de afeto e resistência
Colunista Giordana Cunha escreve sobre o universo feminino todas as sextas-feiras


Seu Valdemar de Oliveira não imaginaria onde sua criação chegaria. A cerveja preta sem álcool que fazia para seus filhos e, depois, para seus netos ultrapassou as paredes de seu galpão e está ganhando o Brasil.
É a sua neta Janaína de Oliveira a responsável por deixar viva sua receita. A cerveja era feita por ele como uma alternativa para substituir o refrigerante nas datas comemorativas, como aniversários e festas de final de ano.
– Nós não tínhamos dinheiro para comprar refri, então ele fazia a cerveja. Dizia que era refri, pra que a gente não chegasse na escola dizendo que tomava cerveja (risos) – conta Jana.
No primeiro gole, a pequena Janaína estranhou o gosto. Depois, acostumou e não vivia sem. Seu Valdemar produzia a cerveja em um galpão, trancado a sete chaves. Jana conta que ela e seus primos ficavam nas frestas e até mesmo olhavam debaixo da porta para tentar desvendar a magia que o patriarca fazia naquele local.
– Era muito lúdico. Às vezes, a gente ouvia uma explosão e achávamos que ele usava explosivos na receita, era algo muito misterioso – conta.
Os estrondos que ouviam eram, na verdade, alguma garrafa de vidro estourando. Ele usava estes recipientes para armazenar e fermentar o líquido. Como não tinha espaço para guardar todos os frascos em um refrigerador, após o processo de fermentação, os vidros eram enterrados para esfriar e deixar a cerveja “mais fresquinha possível”.
Depois de 23 anos sem colocar um gole da cerveja na boca, pela falta de seu idealizador, em novembro de 2023 Jana achou o engarrafador que seu avô usava no processo de fabricação. Comentou com seu pai e disse ter saudade de quando consumiam a criação do patriarca, que era quem “unia a família”. Seu pai, ao relembrar dos momentos, confessou ter a receita – até então misteriosa.
Jana decidiu tentar produzir, só para matar a vontade de tomar aquela cerveja, que além de doce, tinha gosto de infância. Produziu. Nas primeiras vezes, disse que seu pai, muito criterioso, provou e disse não ter ficado muito parecida com a que Seu Valdemar fazia.
A prática leva à perfeição, já diria o ditado popular. E foi o que aconteceu com ela.
Pretinha
Perguntei para Jana se o nome era um apelido carinhoso usado por seu avô ao se referir ao produto. A resposta foi essa:
– É uma provocação.
Por morar em uma cidade de colonização alemã, ela conta que o racismo é muito forte em Novo Hamburgo. Como se não bastasse, ela citou outros obstáculos enfrentados.
– É um preconceito muito grande por ser mulher preta, periférica, que faz cerveja, algo que é bem masculino. Aí, a gente se insere no mercado e dizem: “Ah, mas é cerveja preta sem álcool, não é feita no mesmo processo que eu faço a minha cerveja na minha cervejaria” – relata, afirmando que sua produção ainda é artesanal, mas que chegará ao nível de ter maquinários.
Do Rio Grande do Sul para o mundo
Como a receita rende 20 litros, sobrava muito quando produzia, porque, em um primeiro momento, era só para a família beber. Ela passou, então, a distribuir entre os amigos e a vizinhança do bairro Canudos, em Novo Hamburgo.
Caiu no gosto do povo.
Quem consumia a Pretinha, dizia para Jana: “Tem que começar a vender!”. E, assim, ela empreendeu. Por enquanto ainda não consegue viver só da renda obtida pelas vendas da cerveja, mas trabalha para isso se tornar realidade. Seu sonho é ter uma cervejaria, mas, antes que isso aconteça, quer inserir o produto no comércio local:
– Quero fortalecer o comércio daqui, né? Para deixar girar a economia dentro do nosso bairro e depois, futuramente, expandir para redes maiores.
Aos poucos, o sonho vai se tornando realidade. Jana foi uma das selecionadas para participar da Expo Favela RS e, dentre os cem empreendimentos gaúchos expostos, ficou entre os 10 selecionados para o evento nacional, que ocorreu no último fim de semana, em São Paulo.
A inscrição na feira regional foi feita despretensiosamente, conta Jana, afirmando que ficou até assustada com a grandeza dos eventos:
– É um evento imenso. Eu estava acostumada a pegar minha mesinha,
minha caixa de isopor e fazer as feiras (independentes, de rua)... Coisa pequena. Cheguei lá e tinha toda uma estrutura.
Segundo a empreendedora, a Cufa dá show no quesito suporte aos participantes. Desde o banner que identifica a empresa no estande até mentorias antes e depois do evento são feitos “com muito carinho e cuidado”.
As notícias vindas da capital paulista são boas e animadoras: há investidores rondando a Pretinha. Jana não pôde dar mais detalhes porque a negociação recém começou, mas contou, também, com um sorriso largo no rosto, que recebeu convites para expor em outros Estados.
Hoje, uma garrafa de 500ml de Pretinha Cerveja Preta é vendida a R$ 10. Pedidos podem ser feitos pelo Instagram @pretinha.cervejapreta ou pelo telefone (51) 99226-1585.