Depoimento de jura
Declarações de um traficante: "A polícia que corra atrás"
Reportagem teve acesso ao depoimento de Juraci Oliveira da Silva, o Jura, e reproduz os principais trechos
"A polícia que corra atrás". A afirmação, que soa como um desafio às autoridades, foi feita em frente a uma magistrada por um dos maiores traficantes do Estado, Juraci Oliveira da Silva, o Jura, ao admitir que continua comandando a venda de drogas mesmo de dentro da Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc). Desde 2010, ele cumpre pena por tráfico e por homicídio. Esta foi apenas uma das revelações que o criminoso, apontado como o patrão do Campo da Tuca, na Zona Leste de Porto Alegre, fez recentemente, durante um julgamento do qual foi absolvido da acusação de ser o mandante de um duplo homicídio ocorrido em 2006.
Por mais de três horas, o traficante discursou diante da juíza e do corpo do júri, negando a autoria dos crimes que estavam sendo julgados, mas admitindo que, em outras circunstâncias, já matou e mandou matar. Disse que, no seu território, não perdoa estuprador ou assaltante. Admitiu que mantém suas movimentações no morro em que cresceu, virou patrão e tornou-se uma liderança do crime organizado no Estado. E foi além: denunciou um episódio de uma suposta extorsão policial, que teria resultado na sua inclusão no processo do qual foi absolvido.
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O Diário Gaúcho teve acesso ao depoimento do traficante e mostra os principais trechos de uma narrativa que corrobora o que as investigações policiais já apontam: trata-se de um dos principais comandantes do crime, mesmo dentro da cadeia. Confira trechos do depoimento de Jura.
O DONO DA TUCA
"Morei no Campo da Tuca desde os meus dois anos de idade. (...) Se eu acho que é ruim comigo ali, com certeza é pior sem eu. Pelo menos, eu não deixo ter arriado, não deixo estuprar ninguém, eu não deixo roubar nada da casa de ninguém. (...) Tem bastante gente na plateia que sabe do que eu estou falando. (...) Não ajudo para ter a comunidade na minha mão, eu não preciso disso. (...) Eu compro remédio para a comunidade, eu compro comida, eu compro roupa, eu distribuo brinquedo no Natal. (...) Eu nunca exigi toque de recolher, nunca teve problema de tiroteio..."
Para o coordenador do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Puc, Rodrigo Azevedo, historicamente, a lucratividade da droga facilita o estabelecimento de relações entre traficantes e a comunidade:
- Em algumas situações, esta relação se estabelece exclusivamente pela violência. Mas é bem mais complicado quando estes grupos têm o apoio da comunidade graças a benefícios, como a distribuição dos ganhos do mercado ilegal, seja com alimentos, medicamentos ou instalação de bens públicos. Nesses casos, é mais difícil de se quebrar este elo, pois as pessoas dão legitimidade aos grupos porque eles estabelecem vínculos permanentes e mais amplos.
O COMEÇO NO CRIME
"Em oitenta e poucos a noventa, existia uns ladrões na vila. Eles roubavam dos outros, eu não sabia de quem. Eu fazia um aviãozinho pra eles, pegava um xis e um baseado de maconha. Eu achava bonito aquilo. Só que, com o tempo, eu fui crescendo e comecei a ver algumas atitudes erradas deles. De dia, eles roubavam, de noite, uns estupravam. Muita gente sofreu nas mãos deles, e eu achei que podia ser o vingador disso aí..."
Rodrigo Azevedo analisa que a comunidade teria mais confiança nesses grupos do que na polícia:
- Embora violentos e criminosos, as pessoas sabem as regras do jogo e isso dá a elas segurança para lidarem com isso. É uma situação onde claramente temos uma privatização de determinadas áreas onde o Estado não exerce suas funções de forma adequada. Acontece tanto com traficantes quanto com as milícias. Tem muitas áreas nas grandes cidades, especialmente nas periferias, em que não valem as regras e leis, o que vale é outro conjunto de normas. É como se não estivessem sob jurisdição estatal.
O INÍCIO NO TRÁFICO
"Chegou numa instância da minha vida que cansei de trabalhar. Eu não tinha estudo! Arrumei 100g de maconha. Eu tinha um Fiat 147. Era de 97, como é que ia vender aquele carro? Consegui pegar um carro de nove anos e 100g de maconha e comecei a fumar. Aí passava um e dizia: me vende um baseado, me dá um baseado. E assim foi indo, foi indo e eu fui me envolvendo". (...) Eu faço a minha movimentação no morro, eu ganhei o meu pão no morro..."
Quando perguntado pela promotora do caso se continua fazendo isso, ele relatou:
"Continuo. (...) Mas a polícia, eles que corram atrás. A senhora quer que eu faça o serviço da polícia?"
Segundo o diretor do Denarc, Emerson Wendt, a estrutura do sistema penitenciário não consegue coibir que, mesmo de dentro do presídio, sejam feitas transações ilegais:
- Infelizmente, isso é facilitado pela comunicação e pela tecnologia que ele acaba utilizando no interior das cadeias.
Conforme o comandante do 19º BPM, tenente-coronel Carlos Souto, embora seja reconhecidamente uma área de conflito do tráfico, a situação na Tuca, hoje, é "controlada".
A TOMADA DO MORRO
"Os traficantes cobravam pedágios. As senhoras subiam com duas sacolas de comida e tinham que deixar uma. O dono do bar tinha que pagar um pedágio, 100 (reais) por semana. De noite, eles pegavam as guriazinhas que gostavam de cheirar pozinho. Eles se aproveitavam das gurias ou muitas vezes pegavam à força. E eu, achando que tinha condições de meter contra eles, meti e botei pra correr alguns outros. Aí outros morreram. E eu achei que deveria traficar. E realmente comecei a ganhar minha vida assim".
O promotor Ricardo Herbstrith, responsável pela Operação Campo da Tuca, realizada entre 2008 e 2009, que rendeu a primeira condenação de Jura por tráfico de drogas e associação ao tráfico, não se surpreende com o discurso do traficante.
- Ele sempre foi de falar abertamente que é o chefe do morro, que manda, que protege, que é uma autoridade na Tuca - conta o promotor.
EXTORSÃO POLICIAL
"Eu estou nesse processo porque a Polícia Civil tentou me extorquir dinheiro, e eu não quis dar. O meu irmão conversou comigo, e falou: 'os caras vão botar homicídio em nós, os caras estão pedindo...'. Foi R$ 70 mil, R$ 35 mil por cada homicídio. Nas outras audiências, eu sempre falei. (...) Nunca tentaram investigar. (...) Esse policial civil (um dos citados) é corrupto, ele é um sem-vergonha. (...) Ele faz parte de uma patota que queria os R$ 70 mil. (...) Eles marcaram o ponto de encontro lá e esses policiais foram e botaram o preço, dizendo que se eu não botasse o dinheiro (...) eu iria para a bronca. Sabe como é gíria de policial: 'bota o carvão ou nós vamos botar vocês na bronca'".
Para a corregedoria da Polícia Civil, o episódio citado por Jura é uma novidade e não há nenhuma investigação em andamento para apurar tais acusações.
OS ASSASSINATOS
"Já matei. Nunca falei que não matei. Mas nunca matei nenhum trabalhador, gente decente. (....) Agora, se me dissesse que tem um cara dentro do Campo da Tuca que é estuprador, pedófilo, com certeza eu faria de tudo para matar ele."
Além das condenações por homicídios, ainda tramitam na Justiça outros dois processos por assassinato envolvendo o traficante. E, na esfera federal, Jura ainda é um dos envolvidos no Caso Becker. Jura é acusado de ter contratado os matadores.
O CHEFE DA GALERIA
"Em cada galeria da Pasc moram 18 presos. (...) A polícia vai lá e me pergunta se o preso pode vir para a nossa galeria. Eu vou lá e chamo os 18 da galeria: "oh, rapaziada, alguém tem problema com o fulano? Se tem problema, me avisa que eu não deixo vir...".
O relatório do Mutirão Carcerário do Estado do RS, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2011, aponta Jura como líder de um dos grupos da facção Abertos dentro da Pasc. O poder do traficante no sistema prisional é reconhecido por autoridades.
O CAMINHO SEM VOLTA
"Sou traficante? Sou! Eu não tenho mais volta do crime, mas eu não sou vendedor de droga andarilho. Eu não vou na casa de ninguém oferecer droga, eu não bato de porta em porta oferecendo. Sobe o morro quem quer. Ninguém sobe obrigado ou desce de rapel ali. Eu não viciei ninguém. Eu tenho quatro filhos e se Deus quiser eles vão se formar e vão ser alguém na vida..."
Trecho de sentença em que foi condenado por tráfico de drogas e associação ao tráfico: "Segundo a denúncia, na organização, cada denunciado tem sua função definida, sendo o réu Juraci de Oliveira da Silva o grande líder da associação criminosa, comandando, mesmo quando estava detido na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas, os demais integrantes".
RECADO AO JÚRI
"Eu peço para os senhores, podem olhar bem nos meus olhos, eu não estou ameaçando ninguém. O meu olhar não é de ameaça. Não estou aqui para ameaçar ninguém. Eu olho nos olhos de vocês. Não tenho por que mentir (...) Eu só peço para vocês terem muita sabedoria. Peço para vocês pensarem, olharem nos meus olhos e entenderem no coração de vocês. (...)."
No dia 19 de março, em julgamento que foi a júri popular, foi absolvido da acusação de ordenar, de dentro da Pasc, a execução de Henrique Ribeiro da Silva e Wagner Machado Silveira.
HISTÓRICO DE CRIMES
* Considerado patrão do tráfico na região do Morro da Tuca, Juraci Oliveira da Silva, o Jura, está na Pasc desde 2010.
* É um dos líderes da facção Os Abertos, que disputa poder nos presídios gaúchos.
* Em janeiro, foi condenado pelas mortes de Luis Fernando dos Santos Giuliano, Octacílio Prates da Cunha Neto e Vladimir Medeiros de Oliveira.
* Tem três condenações por tráfico e outra por homicídio. DG não teve detalhes.
* Responde pelo duplo homicídio de Leandro Santos da Cruz e Marcelo Gomes de Sá e o assassinato de Alan Paulo Kelling Soledade.
* No âmbito federal, responde pela morte do ex-vice-presidente do Cremers, Marco Antonio Becker.
Diário Gaúcho