Peças da tragédia
Por que Emanuel foi morto aos 12 anos
Diário Gaúcho montou o quebra-cabeças das tentativas e erros que cercaram a curta vida
O relatório 997, de 2010, do Conselho Tutelar de Porto Alegre, tem o nome de Emanuel Vinícius Gonçalves Rocha escrito a lápis, como em um rascunho. A morte do menino de 12 anos, abatido a tiros no Bairro Restinga em 30 de abril, não se explica só no inquérito policial, ainda não concluído. Ela foi rabiscada rápida e tragicamente desde os primeiros passos de Emanuel.
O parecer forma um calhamaço de registros que resume as tentativas fracassadas da rede de proteção à infância. Fruto de um lar desfeito, nunca teve pai, perdeu o irmão, ainda adolescente, quando estava com dez anos.
Desde os seis anos, Emanuel foi acompanhado por todas as estruturas públicas possíveis: escolas, Conselho Tutelar, assistência social, abrigos e a Fase. E escapou dos braços de todos, colecionando fugas. Não fixou raízes e foi vendo o seu fim, abandonado em uma rua escura da Restinga, ser desenhado. Os tiros foram apenas o último traço deste rascunho.
Com a ajuda dos registros oficiais, o Diário Gaúcho montou o quebra-cabeças das tentativas e erros que cercaram a curta vida de Emanuel.
Infância acaba nas mãos do tráfico
- Tô com fome, tio. Me dá dois reais pra um lanche.
O homem, um entregador de água, deu o dinheiro ao menino que o abordou na Praça da Alfândega, no Centro da Capital. Ele já o conhecia. Dias antes, o vira nas ruas da Vila Teresina, Bairro Medianeira, na Zona Sul. Naquela manhã de segunda-feira, 27 de abril, o guri franzino estava com dois meninos do mesmo tamanho e uma menina. Eles pareciam estar com fome - e sem dormir.
O mais desenvolto era Emanuel Vinícius Gonçalves Rocha, 12 anos. Ele pegou os R$ 2 e correu para o centro da praça. O que fez com o dinheiro, não se sabe. O entregador foi a penúltima pessoa a falar com Emanuel antes que ele fosse encontrado morto, fuzilado com cinco tiros nas costas, na madrugada de quarta, dia 30, no Bairro Restinga. Resta à polícia recompor a última peça do triste quebra-cabeças da vida de Emanuel: entender como ele foi parar na Restinga e quem o matou.
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A Restinga foi a última parada de quem nunca fincou raízes em nenhum lugar. Só com a família, passou por pelo menos seis comunidades entre a Capital e a Região Metropolitana. Nas ruas, envolveu-se com o tráfico de drogas. Para driblar o abandono e ser aceito entre os traficantes, criou para si um personagem. Enchia o peito para contar:
- Os Bala na Cara mataram a minha mãe e o meu pai. Eu vivo sozinho, na rua.
Foi com esse relato que ganhou a amizade de um adolescente quando esteve internado provisoriamente na Fase, em março deste ano. O rapaz estava envolvido com o tráfico de drogas em uma vila da Zona Sul de Porto Alegre. Saiu da Fase na mesma época em que Emanuel. No dia 11 de abril, o menino foi encaminhado a um abrigo em São Leopoldo, onde deveria cumprir medida socioeducativa em semiliberdade por tráfico. Ali, ficaria mais próximo da família.
Apenas dois dias depois, porém, Emanuel fugiu durante um passeio das crianças do abrigo em Porto Alegre. Segundo a investigação da 4ª DHPP, sua primeira parada foi no Condomínio Princesa Isabel, o Carandiru. Uma testemunha confirma que ele chegou ao local pedindo trabalho aos traficantes. Ali, reencontrou o companheiro de Fase.
Do Carandiru, teria ido para a Vila Teresina, onde, durante as tardes e madrugadas, vendia drogas nos becos. Recebia um troco, só para comer, e, ao amanhecer, juntava o que tinha e seguia para a Praça da Alfândega.
Foi na praça, na tarde do dia 28, que um dos assistentes sociais do Ação Rua tentou, pela última vez, recuperar o menino. Desde os oito anos, o grupo mantinha contato com ele e a família. Dessa vez, contudo, Emanuel não foi receptivo. Ficou com o cartão do agente.
Era o único documento encontrado nos bolsos da bermuda que vestia ao ser encontrado morto.
Com medo de casa e da família
Emanuel tinha apenas seis anos quando foi encontrado pela Brigada Militar vagando pelas ruas do Centro de Porto Alegre. A situação se repetiu duas vezes. Em ambas, o menino foi entregue à família, que morava no Loteamento Timbaúva, Bairro Mario Quintana, mas acendeu um alerta no Conselho Tutelar.
- Era um menino bem agitado, que não falava muito. Desde cedo fingia ser muito valente, mas quando se aproximava dava para perceber toda a imaturidade típica de uma criança - conta a conselheira tutelar Salete Basso.
Desde essas primeiras fugas, ficava visível a estrutura de uma família que desmoronava. Emanuel era o terceiro dos quatro filhos de Jocelaine Gonçalves Rocha. Perdeu a avó materna, que seria um dos suportes da casa, muito cedo e, desde pequeno, passou a acompanhar o ex-companheiro da mãe como catador.
Aos nove anos, voltou a fugir. E, dessa vez, relatou que não ficaria em casa para não apanhar do padrasto. O Conselho Tutelar solicitou, então, pela primeira vez o seu acolhimento ao município.
- Queríamos entender mais ele e era necessário retirá-lo do ambiente em que ele se sentia ameaçado - conta Salete.
Já abrigado, entrou em surto na escola que passou a frequentar. Bastante agressivo, ele revelou às conselheiras muito ódio pelo que estava na iminência de voltar a encontrar em casa. Passou pela primeira avaliação psiquiátrica, que detectou um "transtorno de conduta". Foi internado pela primeira vez. Até o ano passado, seriam quatro internações de menos de um mês. As três primeiras, por comportamento agressivo. A última, no São Pedro, para desintoxicação.
A reportagem do Diário Gaúcho entrou em contato com Jocelaine, a mãe de Emanuel, mas ela não quis conceder uma entrevista.
Morte do irmão foi ponto crítico
Era início de junho de 2013, quando o adolescente Vitor Alexandre Rocha Freitas, 15 anos, morreu golpeado a pauladas na Vila Pedreira, Bairro Santa Tereza, Zona Sul de Porto Alegre. Vitor era o irmão mais velho de Emanuel, que tinha 10 anos na época. A partir dali, o caminho do menino se tornava ainda mais crítico.
- O Emanuel depositava muita confiança em recuperar esse irmão. Quando conversávamos com ele, era o único elo que ainda o prendia a alguma responsabilidade - conta a conselheira Aline Müller da Silveira.
Sem o nome do pai em sua certidão de nascimento, Emanuel sempre tratou o assunto como uma caixa preta. Não há, em documentos oficiais, nenhum relato dele sobre o pai. Restava a referência do irmão.
Vitor era dependente químico e estaria envolvido com o tráfico. Foi por conta dele que a família vivia se mudando. Eram de Alvorada, mudaram-se em 2009 para o Bairro Mario Quintana, passaram pela Vila Dique, no Bairro Sarandi, e pela Vila Cruzeiro, na Zona Sul. Foram incluídos no Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados (PPCAM) e transferidos para fora da Capital. Mas, em menos de seis meses, foram excluídos do programa.
O inquérito nunca foi solucionado. Caçar os algozes do irmão virou um objetivo para Emanuel. Depois da morte de Vitor, ele fugiu ainda cinco vezes de abrigos ou de casa e nunca mais se fixou na escola.
- Toda vez que fugia, parecia estar voltando aos lugares que ele tinha algum tipo de referência. Diversas vezes, entre 2013 e 2014, eu fui buscá-lo em Alvorada. Na última vez que o vi, ele estava esfomeado, dizia que queria comprar uma moto e ir buscar quem matou o irmão dele - lembra a conselheira Salete Basso.
No começo deste ano, foi flagrado pela Brigada Militar, no Centro da Capital, depois de roubar um pedestre. Entregue à família, escapou de novo e, no começo de março, novamente foi pego. Dessa vez, traficando crack no Centro.
Escola Timbaúva, um dos lugares onde o menino estudou | Foto: Eduardo Torres
Escolas não seguraram Emanuel
Se não havia quem controlasse Emanuel em casa, na escola menos ainda. Aos 11 anos, foi registrada a sua última matrícula. Era a quinta escola por onde passava. Parou no terceiro ano do ensino fundamental. Uma derrocada que começou a ser detectada em 2011, quando fez nove anos. O relatório da Escola Timbaúva, no Bairro Mario Quintana, resumia um ano escolar perdido.
De acordo com a direção, ele permaneceu no terceiro ano por excesso de faltas. Entre uma fuga e o retorno para casa, foi levado pela mãe, no começo de 2012, para outra escola no mesmo bairro, a Wenceslau Fontoura. E os resultados foram ainda piores.
Em fevereiro, foi abrigado pela primeira vez e, ao voltar para casa, não durou dois meses na escola. Fugiu. Ele voltaria ao colégio em abril do ano seguinte. Já no primeiro dia de aula, a mãe foi chamada. Enquanto ela conversava com os professores, Emanuel fugiu de novo. Foi encontrado pelos conselheiros tutelares, pedindo para não voltar para casa.
A última iniciativa de engrenar nos estudos partiu dele próprio. Ironicamente, quando esteve apreendido, dentro da Fase.
- Não são raras as situações em que nos deparamos com meninos que nunca conheceram limites na infância. Ao chegarem na Fase, se deparam com uma rotina. Na primeira semana, eles já estão matriculados na escola - diz o diretor socioeducativo da Fase, André Severo.
Mas Emanuel ficou apenas 30 dias no Centro de Internação Provisório Carlos Santos. Ao ser encaminhado ao abrigo, em São Leopoldo, deveria ter sido matriculado na rede normal de ensino. Mas fugiu de novo. Pela última vez.
"A gente meio que prevê o fim"
Quando recebeu a ligação de uma tia do Emanuel, na manhã de 29 de abril, contando da morte do menino, a conselheira tutelar Aline Müller da Silveira não chegou a se surpreender.
- É muito triste, mas, na medida, em que vamos acompanhando um histórico como o dele, a gente meio que prevê este fim. No dia a dia, vemos que os traficantes estão aliciando a gurizada cada vez mais cedo, mas o caso do Emanuel foi o mais precoce em que eu já vi - conta.
Atuante na região do Bairro Mario Quintana, Zona Norte da Capital, onde Emanuel viveu com a família até os nove anos, Aline é uma das responsáveis pelo pesado relatório 997, de 2010.
Ali estão registrados praticamente todos os tropeços da vida do menino. Ele até poderia ser considerado uma exceção no acesso aos serviços públicos, porque foi acolhido e acompanhado desde os seis anos pelas mais diversas redes de proteção.
Em 2012, quando a mãe foi denunciada por negligência, o Conselho Tutelar solicitou à Justiça o primeiro acolhimento do menino. Entre entradas e saídas neste sistema, as medidas incluíram, em 2013, até mesmo a colocação dele em uma casa-lar.
Para os especialistas, o que sempre faltou ao menino foi a referência familiar. No período em que permaneceu internado provisoriamente na Fase, por exemplo, a mãe só conseguiu visitá-lo uma vez. A conclusão foi de que ele deveria cumprir medida socioeducativa o mais próximo da família possível. Como a mãe vivia em São Leopoldo, ele foi para um abrigo de lá.
- Nos pareceu uma medida excelente, porque ele vinha demonstrando interesse em estudar e retomar contatos enquanto esteve na Fase. Infelizmente, não funcionou - lamenta a coordenadora das equipes de Proteção Social de Média Complexidade da Fasc, Lirene Sinkler.
O último órgão público que poderia avaliar o menino nem conseguiu cumprir seu papel. Quando teve contato com o relatório sobre Emanuel, a juíza Ângela Martini, responsável pelo cumprimento da medida pela Vara da Infância e Juventude de Novo Hamburgo, foi também notificada da sua fuga do abrigo.
*Diário Gaúcho