Polícia



A rotina da casa

Meninas do tráfico: "Ninguém entra e sai igual"

Depois de cinco dias ao lado das 30 jovens reclusas na Fase, a reportagem do Diário Gaúcho montou uma série especial para mostrar a transformação destas meninas

31/05/2012 - 08h19min

Atualizada em: 31/05/2012 - 08h19min


Centro de Atendimento Socioeducativo Feminino abriga meninas menores infratoras

Como é a rotina das meninas reclusas na Fase? Para revelar detalhes, o Diário viveu cinco dias ao lado das 30 gurias. Primeiro veio o convívio, depois a revelação de que uma reportagem estava em construção. Este é o segundo capítulo da série. O título abaixo foi sugerido pelas internas, depois de uma votação entre elas.

Ela clamou pelo retorno

- No Casef, ninguém entra e sai igual.

A garantia é da diretora, Luciana Carvalho. Pode não mudar totalmente, mas internamente muda, diz ela. A história a seguir é uma prova.

A menina, cujo delito foi assalto, passou 72 dias interna e não resistiu ao primeiro final de semana de liberação para visitar a família. A fissura pela droga era tanta que nem o carinho da mãe, o conforto do lar e a saudade do namorado a seguraram.

L., 16 anos, foi para a boca de fumo. Só saiu de lá dois meses depois, ao despertar de um pesadelo:

- Sonhei que estava perdendo todo mundo que gostava de mim, todos os meus planos. Decidi que queria voltar - conta a morena, hoje vaidosa, cabelo escovado, unhas feitas, roupa nova.

- Na boca, trocava o corpo pela droga

A primeira ligação foi para a mãe, que a colocou num ônibus da Grande Porto Alegre e as duas seguiram até a unidade. A decisão estava tomada e a garota batia no portão, em frente a guardas e monitores incrédulos:

- Não cometi delito novo, mas eu tenho um para pagar! Eu vim me entregar, por favor me aceitem!

Mas não era tão simples. Foragida da Justiça, L. tinha uma burocracia a cumprir até conseguir voltar para o Casef. Então, ela decidiu acelerar o processo. Discou 190.

- Polícia, polícia, venha me prender, por favor. Eu sou perigosa - denunciava para a Brigada Militar.

Hoje, reconhece: o cuidado que tem dentro da unidade nunca teve na rua. Os dois primeiros meses de internação foram cruciais para a reflexão.

- Quando eu estava lá na boca, precisava me prostituir para conseguir a droga. Lembrava das doenças transmissíveis e pedia pela camisinha. Essa foi uma lição que eu tinha aprendido aqui dentro - confessa a garota.

Teve medo dela mesma

O cabelo trançado, os olhos esverdeados e a cara de boneca em nada refletem a assassina fria e calculista descrita na delegacia. L., 16 anos, assume um homicídio, mas se defende: é vítima das circunstâncias.

Não conheceu o pai, cresceu com a mãe lhe xingando. O primeiro que lhe ofereceu carinho, ela aceitou. Segundo o delegado, o cara era um grande traficante da Região Metropolitana. Ela jura que não. A polícia prova que sim.

- Fiquei com medo de mim mesma quando pensei no que eu fiz. Fui um monstro - reflete.

Para a coordenadora Patrícia Dornelles, L. é um exemplo do trabalho de transformação que começa no Casef:

- O cara ser traficante, qual é o problema? É a profissão dele. Assim elas pensam quando chegam. Temos de educar e reinserí-las na sociedade.

Pensando nela

Não são raras as meninas que carregam vidas consigo. Grávidas, levam a gestação junto com a medida privativa de liberdade. Hoje são duas no Casef. Uma engravidou no presídio, em uma visita íntima ao companheiro. A outra, B., 18 anos, chegou à casa com seis meses de gravidez e exame feito.

Usuária de drogas, foi apreendida por tráfico na Região Metropolitana. Está com oito meses de gestação e até o sexto, o crack a acompanhou. Flagrada num carro com traficantes e drogas, foi parar no Casef, onde fez exames necessários para a saúde do bebê.

- Para onde fui, sempre fui por causa da droga. Não pensava na minha filha. Agora, penso nela.

... A DOIS PASSOS DO PARAÍSO


É terça-feira, 22 de maio, 17h55min, e a música ecoa pelo corredor:

- Estou a dois passos do paraíso...

A menina que canta o hit da banda Blitz tem menos de 20 anos e sabe muito sobre a vida. E a falta de liberdade. Não está ali por acaso. Está pagando pelo delito que cometeu. Mas sabe que tem nas mãos a chance de mudar de vida.

Ela é uma das 30 internas do Centro de Atendimento Socioeducativo (Casef), a única casa feminina da Fase/RS.

Como uma casa de bonecas cravada no coração da Vila Cruzeiro, na Capital, a sede feminina é considerada um exemplo nacional. Uma equipe de 59 servidores - agentes socioeducadores, assistentes sociais, psicólogos, psiquiatras e terapeutas - se reveza para atender as menores infratoras.

Por trás de um portão de ferro azul, na Avenida Jacuí, vigiado por seguranças e até brigadianos, está a casa. O orgulho de todos é o cadeado da porta principal: isso porque é a única tranca que separa a instituição do pátio.

- Carinho há. Mas as regras são rígidas

Os tons alaranjados e lilás, os quadros da parede, as flores nos corredores em nada se assemelham ao imaginário das gurias a caminho de uma unidade de internação. O carinho dos funcionários, muito menos.

Mas as regras... ah, as regras são rígidas.

Resgatar a autoestima. E as que fogem...

Às 6h, as internas devem estar de pé. Em uma hora, tomam banho e café da manhã. Afinal, há atividades até as 22h. A passagem dos plantonistas ocorre às 7h. Às 8h começam as aulas - as do fechado estudam na Escola Tom Jobim, anexa à casa, com professores do Estado. As demais, têm escolas fora.

O destaque nacional orgulha a juíza da 3ª Vara do Juizado da Infância de Porto Alegre, Vera Lúcia Deboni:

- É a conquista das equipes, dos vínculos que se estabelecem com as internas. O resultado mostra que é possível ressocializar.

Vera destaca as oficinas e os cursos profissionalizantes.

- Muitas entram com uma autoestima muito ruim. E o Casef faz esse resgate da guria querer estar bem, bonita.

Ainda assim, há fugas. Dias atrás, uma desgarrou-se durante a atividade externa. É considerada foragida.

- Semiliberdade é a medida baseada na confiança - conta a diretora, Luciana Carvalho.

NA VOLTA DA LIXEIRA, ELAS VOAM

O trabalho com as meninas é intenso. Carentes, precisam desabafar, buscam carinho. É "tia" para lá, "tia" para cá, "tia" o dia inteiro. As regras são rigorosas: qualquer deslize resulta em uma norma anotada em um caderninho. Três normas provocam recolhimento ao quarto, sem escapatória.

Assim a confiança começa a ser talhada. E a liberdade, aos poucos, alcançada. Em sete dias, se o comportamento for reconhecido como adequado, a adolescente recebe um kit de risco - inclui, garfo e faca de inox, prato e copo de vidro, além de gilete para depilação e agulha para o bordado. O uso é restrito para áeras comuns. Antes disso, as refeições são feitas no quarto com talheres e pratos de plástico.

- Incentivo vem no grito da diretora

O ápice desse primeiro momento é algo que ninguém faz com prazer: levar sacos de lixo até a lixeira. No Casef, é preciso uma escala para levar o lixo. E a vaga é disputada. Tudo para pegar um ar ou paquerar os meninos da frente...

São 100m que separam a lixeira da porta principal. Mesmo dentro do pátio, é uma conquista. Ganhar o "perímetro" é motivo de vibração, e mais: dá asas. Quando a menina descarta o lixo e abre os braços, a diretora grita:

- Voa, guria!

É o primeiro voo para a liberdade.

- É como se a gente estivesse na rua de novo - relata uma menina de 20 anos, que responde por homicídio.

Uma década de mudança

- A Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase) foi criada em 2002. Pôs fim à antiga Febem, rompendo com a sina de correção e repressão. Mais que um novo nome, foi desenvolvido outro modo de trabalhar com os adolescentes infratores: tudo baseado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

- A Fase é a instituição responsável pela execução de medidas socioeducativas de internação e semiliberdade, aplicadas judicialmente aos que cometem ato infracional. Há 12 unidades masculinas de internação no Estado e só uma feminina, em Porto Alegre: o Casef. Na contagem de abril, eram 896 guris e 30 gurias.

- Estrutura do casef - 33 lugares


Quando uma menina chega, fica no Grupo 1 (G1), o lado rosa (internação provisória), até a Justiça definir a medida. O prazo máximo é 45 dias. Depois disso, há três opções: 1º) O Grupo 2 (G2): é o sistema Fechado, chamado Internação Sem Possibilidade de Atividade Externa (ISPAE). As meninas fazem atividades só dentro da casa. 2º) Internação Com Possibilidade de Atividade Externa (ICPAE): meninas podem fazer atividades fora da casa, como estágios, cursos e exercícios esportivos. 3º) Semiliberdade: estudam e trabalham na comunidade. Dependendo de avaliação, estas e as do ICPAE podem passar o final de semana na casa de familiares.

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