Falta de segurança
Em dois meses, quatro pessoas já foram assassinadas nos inferninhos do Centro de Porto Alegre
Descontrole na região gera insegurança para moradores e familiares de vítimas, que esperam por uma solução
Ainda não se passaram dois meses em 2014 e quatro pessoas já foram assassinadas na região dos inferninhos, no Centro. O problema só cresceu nos últimos 20 anos. Se de um lado as boates são oficialmente regulares no papel, de outro, autoridades de segurança denunciam o descontrole da área. Moradores e familiares das vítimas, por enquanto, só esperam uma solução.
Moradores registram movimento dos inferninhos de madrugada:
A madrugada de domingo, dia 9, era a segunda vez que Luis Fernando de Jesus Carvalho, 22 anos, ia à boate Casa Blanka, no Centro de Porto Alegre, com dois amigos. Ele dizia que não gostava muito do local, mas resolveu curtir um baile funk. Às 3h, o trio comprou espumante.
Empolgados, abriram a garrafa, e a bebida respingou em um grupo quase colado a eles, no ambiente lotado. Depois de empurrões e copos arremessados de lado a lado, a briga terminou em tragédia. Alguém apareceu armado e atirou quatro vezes contra Luis Fernando. O que a mãe, Beatriz Fátima de Jesus Carvalho, 45 anos, não consegue compreender, é como alguém estava armado em um lugar que deveria ser de festa.
- Meu filho sempre foi trabalhador, nunca se envolveu com nada. Era ele quem me ajudava a sustentar a casa. Não é justo ver um filho teu sair de casa para fazer festa e perder ele dessa forma - desabafa.
"É a nossa maior dor de cabeça"
Enquanto ela lamentava a perda do mais velho entre seus quatro filhos, na missa de sétimo dia, nessa semana, na Igreja São Jorge, Zona Leste da Capital, no Centro, mais uma madrugada conturbada estava se encerrando. Para as autoridades de segurança, essa é a rotina no Centro Histórico há pelo menos 20 anos.
Quando anoitece, a área é campo aberto aos inferninhos.
- É a nossa maior dor de cabeça. Esses bares concentram grande volume de crimes, e os homicídios são consequência - afirma o delegado da 2ª DHPP, Felipe Bringhenti.
Conforme levantamento do Diário Gaúcho, desde o começo de 2013, nove pessoas foram mortas nos arredores e dentro dos inferninhos - só neste ano, foram quatro vítimas. No ano passado, a polícia contabilizou ainda pelo menos sete tentativas de assassinatos diretamente ligados às festas descontroladas da região. Fora os casos de tiroteios que sequer viram ocorrências policiais pela ausência de elementos.
"Violência nessa região só aumenta"
- A escalada de violência nessa região só aumenta. Mas enquanto a atividade desses lugares não for rigorosamente regrada, com os estabelecimentos se comprometendo de verdade com a segurança dos frequentadores, vamos continuar agindo na consequência do problema - afirma o comandante do 9º BPM, tenente-coronel André Luiz Córdova.
Oficial critica a legislação
Conforme o tenente-coronel Córdova, pelo menos uma vez a cada trimestre a Brigada faz ações mais fortes na região, com a revista de todos e o apoio dos órgãos municipais e dos bombeiros para vistoriar os estabelecimentos. Na hora, adianta. Uma semana depois...
- Estamos tratando câncer com tylenol - diz o oficial.
Para ele, o problema está na legislação branda no momento de determinar a prisão
de criminosos. A maior parte dos envolvidos nos crimes da região dos inferninhos é reincidente.
Regramento, até agora, só no papo
Se perguntar a quem mora nas proximidades da Rua Marechal Floriano Peixoto (entre a Avenida Salgado Filho e a Rua General Vitorino) qual é o problema dos inferninhos, a lista é longa. Vai desde o barulho, que já forçou muitos a abandonarem a região, passando pela sujeira, presença constante do tráfico e tiroteios. A solução é uníssona: fechá-los.
Para a polícia, o eixo entre as boates Sobradinho, Metropolis, Casa Blanka e Adegas concentra a preocupação pela violência. Uma constatação que o Ministério Público apura desde o ano passado, quando um inquérito - que pode levar os locais ao fechamento ou a uma adequação - foi aberto. Ainda não foi concluído.
Na semana passada, após o assassinato de Luis Fernando, a Brigada enviou ao órgão
um novo relatório sobre as ocorrências na região nos últimos meses.
- É um mistério como esses lugares sempre conseguem se manter abertos depois de
tantos problemas. Quando algum fecha, logo abre em outro lugar próximo e com outros
proprietários. Nós não conseguimos entender - aponta o presidente da Associação de
Moradores do Centro Histórico, Paulo Guarnieri.
Rotina ainda inalterada
No ano passado, a associação chegou a propor um plano para regrar as atividades na
área. No eixo da Marechal Floriano, que é zona residencial, os bares deveriam encerrar
suas atividades até a 1h. Atividades de boates, com funcionamento além deste horário, deveriam ficar limitadas à região mais próxima ao cais do porto, considerada zona comercial.
O 9º BPM chegou a propor uma alternativa mais flexível. Nos finais de semana, as casas poderiam continuar abertas até as 4h. Mas, até agora, nenhum termo foi firmado oficialmente com os proprietários. E a rotina não mudou.
- A maior parte das ocorrências continuam acontecendo no horário em que esses lugares deveriam estar fechados - pontua o tenente-coronel Córdova.
Em seis anos, foram três interdições
A audiência pública de 18 de julho de 2013, que discutiria a situação com o secretário da Indústria e Comércio, Valter Nagelstein, foi frustrante para os moradores. Ao invés
de apertar o cinto às boates, ele foi afrouxado. Fazia quatro meses que, atendendo a pedido da Brigada, o Casa Blanka estava interditado - pela terceira vez em seis anos. Foi reaberto após a reunião.
- Para reabrir, ficou acertado que eles funcionariam até as 4h nos finais de semana - informa o diretor de fiscalização da Smic, Rogério Stockey.
Também ficou definido verbalmente que as boates custeariam a instalação de duas
câmeras na área. Nada foi feito.
Polêmica é antiga
Segundo Rogério, na última semana de janeiro, a Smic fez ação na região e não viu irregularidades nas quatro casas apontadas pela polícia, que estão com documentação
regular. Mas ele reforça:
- O alvará não é carta em branco. Pode ser cassado a qualquer momento, inclusive a pedido dos órgãos de segurança.
Uma ação mais rigorosa, admite o diretor, pelo menos durante o verão é inviável. São apenas 18 funcionários no setor neste período. As idas e vindas nessa polêmica já é antiga. Há 13 anos, os inferninhos foram encerrados pela Smic na Avenida Salgado Filho. Seis anos depois, a morte de um homem no Metropolis deixou claro que o problema tinha migrado - e estava poucos metros adiante.
Uma terra sem dono
A dificuldade para esclarecer homicídios na região está no fato de que, para lá, convergem jovens das mais diversas áreas da Capital e Região Metropolitana. Boa
parte, de ônibus.
- O cidadão, armado, sai da festa e precisa esperar o ônibus. Está em turma e alcoolizado. É a situação propícia para arranjar confusão ou resolver uma pendenga com um desafeto - diz o tenente-coronel Córdova.
Segundo o delegado Felipe Bringhenti, até 70% dos homicídios na área aconteceram por rixas originadas em outros locais:
- Testemunhas são capazes de descrever com precisão o suspeito, mas não fazem ideia de quem seja aquela pessoa.
Com medo, PM largou
Um PM, até o ano passado, fazia "bico" como segurança nos inferninhos. Ele desistiu. O motivo: tinha medo das constantes confusões.
- Se até policial tem medo, imagina nós - diz um morador, que não quer ser identificado.
Há outro elemento na trama que envolve as madrugadas na Marechal Floriano: tráfico. Em uma casa noturna, há suspeita de que um traficante, indiciado pelo Denarc há dois anos e com atuação na Zona Leste da Capital, seja o patrão. O criminoso se encarregaria das atrações funk no local. Apesar das humildes fachadas das casas, há
relatos de clientes que gastam até R$ 5 mil em uma festa. O alto faturamento garantiria
benefícios, como a segurança de PMs.
Nas festas, seus aliados teriam carta branca para andar armados e traficar.
- No ano passado, aplicamos sanção disciplinar a um sargento que fazia segurança a estes estabelecimentos, inclusive na rua. Foi afastado da região para evitar a reincidência - confirma o comandante do 9º BPM.
Em silêncio
Na semana passada, a reportagem do Diário tentou mais de dez vezes contato com donos das boates Casa Blanka, Metropolis, Adegas e Sobradinho. Nenhum deles quis falar.
Polícia ainda procura matadores de Vinícius
A morte de Vinícius Marques da Silva, 22 anos, na madrugada de 30 de janeiro, é o ponto de partida para a polícia desvendar um possível esquema de poder e punição entre os inferninhos. Uma câmera da Rua General Vitorino mostra o momento em que o rapaz foi executado com quatro tiros. O primeiro, à queima roupa, por um homem de moto. E três por outro homem em outra moto.
- Quem atirou, tinha perícia. Típica ação de matador - comenta o delegado Felipe
Bringhenti.
Vinícius, morador do Bairro Morro Santana, havia ido ao Centro sacar seu seguro-desemprego. Resolveu ficar por lá e aproveitar a noite. Segundo a polícia, o rapaz tentou
entrar em duas boates, foi barrado em ambas e discutiu com seguranças, suspeitos
de o terem emboscado.
- A gente só quer Justiça. Como pode o guri vir para o Centro fazer festa e acabar sendo morto? Onde os jovens da periferia, como o meu filho, vão buscar divertimento? - desabafa o pai, Luis Ribeiro, 63 anos.
Histórico
* Nos anos 90, boates na Avenida Salgado Filho ganharam fama pelos casos de violência que aconteciam dentro e nos arredores delas. Foi quando surgiu o apelido de inferninhos.
* Em 2001, após forte campanha dos moradores da região e apelos das autoridades
de segurança, a prefeitura cassou os alvarás das casas.
* Em 2007, quando moradores denunciavam os mesmos inferninhos em endereços
diferentes do Centro, Paulo César Figueira Dias foi morto a tiros na Metropolis. A morte
causou nova ofensiva da BM na Marechal Floriano Peixoto. Houve interdições, todas
temporárias.
* Em 2010, a presença do crack nos arredores das boates aumentou a violência. Outra vez, casas foram interditadas.
* Desde o ano passado, o volume de homicídios na região tem crescido. Foram cinco em 2013. E, este ano, quatro assassinatos.