Polícia



Medo de ser a próxima vítima

Assinar um depoimento como testemunha de homicídio pode ser um atestado de morte

Quem viu um crime, tem a coragem de falar às autoridades e deveria ser protegido pelo Estado, se tornou o elo mais vulnerável da lei do silêncio imposta por traficantes para garantir a impunidade

06/05/2014 - 10h01min

Atualizada em: 06/05/2014 - 10h01min


Homicídio na Zona Sul de Porto Alegre. Próximo ao corpo do jovem de 23 anos, os familiares choram e, estranhamente, seguram a indignação. Eles sabiam que eram vigiados e nem mesmo a presença dos policiais que investigariam o assassinato lhes dava a garantia de que estavam fora de risco. Na esquina, dois jovens estavam parados, em meio à pequena multidão, com os braços cruzados.

- Foram eles que atiraram? - perguntou um policial ao familiar do rapaz morto.

- Não, senhor. Esses vieram para ver se nós vamos falar alguma coisa.

A situação já não surpreende os agentes. Não há dados oficiais de inquéritos de homicídios prejudicados por ameaça às testemunhas, mas a lei do silêncio imposta principalmente pelo tráfico é constante como forma de garantir a impunidade aos criminosos.

- Ser testemunha hoje em dia, infelizmente, pode representar um risco real. São raros os casos de pessoas que se dispõem a depor em crimes que não tenham envolvimento familiar direto - afirma o delegado adjunto da 4ª DHPP, Rodrigo Pohlmann.

No Estado, não há qualquer mecanismo que garanta o sigilo a uma testemunha, a não ser que ela se disponha a mudar completamente a sua vida, entrando no Programa de Proteção a Testemunhas. Quando presta depoimento à polícia, seu nome e seus dados estarão disponíveis à defesa do réu durante todo o processo, como forma de garantia à ampla defesa.

- Não são raros os casos em que testemunhas retiram os seus depoimentos depois de sofrerem ameaças. E isso gera um novo inquérito, por coação à testemunha durante o processo. Mas como garantir que essa pessoa tenha coragem de depor novamente? - questiona o titular da 4ª DHPP, delegado Gabriel Bicca.

De acordo com o Ministério Público, em algumas regiões da Capital, denúncias de coação chegam a até um terço dos processos. Dificilmente, porém, o inquérito vai adiante, devido à falta de garantias ao denunciante.

Catarinenses têm alternativa

Em Santa Catarina, uma norma da Corregedoria-Geral de Justiça garante a "testemunha sem rosto". A medida, questionada no STJ, determina que os dados da testemunha fiquem acessíveis apenas ao juiz do processo. Dar acesso a essas informações para o advogado do suspeito, por essa determinação, fica a critério do magistrado.

Para o promotor criminal Julio César Melo, esta poderia ser uma alternativa.

- O importante é o conteúdo do depoimento e o quanto isso é importante para condenar ou até absolver alguém - justifica.

Mas ele admite a dificuldade em aprovar algo semelhante no Rio Grande do Sul.

- A pessoa precisa ter ciência do que é acusada e quem a acusa, é uma garantia legal. É claro que, com essa realidade de mais de 80% dos homicídios ligados ao tráfico, com forte poder da lei do silêncio, testemunhar virou um problema - afirma o juiz da 1ª Vara do Júri de Porto Alegre, Felipe Keunecke.

Segundo o magistrado, é cada vez mais frequente, durante os julgamentos na Capital, que testemunhas apareçam usando perucas ou outros artifícios que dificultem o reconhecimento. Para mudar essa realidade, Felipe Keunecke acredita em outra saída:

- Enquanto as leis contra o tráfico não forem endurecidas, e as vilas populares não receberem atenção real do poder público, nada vai mudar. O traficante é um serial killer e a legislação precisa contemplar isso.

Se ninguém fala...

A perda de uma testemunha pode representar, para a polícia, um inquérito de homicídio sem solução. Mais de 90% das investigações na Região Metropolitana se baseiam na prova testemunhal.

- Não é difícil determinar a autoria de um homicídio. Complicado é conseguir colocar isso no papel, em depoimento - afirma o titular da Delegacia de Homicídios de Alvorada, delegado Maurício Barcellos.

A alternativa seria o levantamento de provas técnicas, o que atualmente, com o sucateamento do IGP, é quase inviável. O laudo pericial mais importante em um caso de assassinato é o de balística. Hoje, 3,4 mil exames desse tipo estão na fila. Mas o problema estrutural não se restringe a isso.

- Tenho inquérito que há mais de um ano aguarda o laudo de necropsia, que serve para comprovar que a pessoa morreu - diz o delegado.

A comparação com a investigação nos Estados Unidos é constrangedora. Lá, mais de 80% dos casos de homicídios são solucionados a partir de provas técnicas.

- As deficiências da coleta de provas técnicas não interferem necessariamente na solução do caso, mas na celeridade da condenação. Quanto mais demora para que o acusado vá a julgamento, mais aumenta a sensação de impunidade e o desestímulo de uma testemunha - acredita o promotor criminal Júlio César Melo.

Impunes até na cadeia

O "remédio" jurídico para dar segurança às testemunhas é a determinação de prisão preventiva dos suspeitos. Resolveria se as grades garantissem o isolamento do criminoso.

No ano passado, um traficante conhecido como Felipinho, da Vila Cruzeiro, Zona Sul da Capital, foi indiciado por coação de testemunhas durante um processo de homicídio que respondia. Preso em flagrante, ele rapidamente soube quem havia testemunhado o crime à polícia. Da cadeia, por telefone, teria dado ordens para que seus soldados dessem um recado ao denunciador.

Imediatamente, duas testemunhas apareceram na delegacia retirando seus depoimentos. A terceira, sumiu. Para azar do criminoso, as suas ligações haviam sido monitoradas durante uma investigação do Deic.

Responsabilidade é do Estado

Para o secretário geral da OAB/RS, Ricardo Breier, a norma da "testemunha sem rosto" é inconstitucional. Ele afirma que a responsabilidade pela insegurança das testemunhas é do Estado.

- Ao depor, a testemunha precisaria ter a garantia de que seria defendida pelo poder público. Mas a desestrutura é total e o programa de proteção não funciona - critica.

De acordo com ele, se ficar comprovado que algum advogado foi o responsável por revelar dados da testemunha de acusação para o réu, há possibilidade de processo ético contra o profissional.

- Defender criminosos também tem limite. Se um advogado ultrapassa o limite ético, está agindo fora da lei. Estimular a coação a uma testemunha é interferir no processo - afirma Ricardo.

Segundo ele, não há nenhuma denúncia desse tipo atualmente na comissão de ética da OAB/RS.

- Eu recomendo que as pessoas que se sentem ameaçadas com a participação de advogados denunciem, e vamos investigar a fundo - garante.

Proteção só no papel

O Protege, criado há 14 anos, atende atualmente a 35 pessoas. A Secretaria de Justiça e Direitos Humanos não revela dados como o atual orçamento do programa, que varia a cada ano.

Para ser integrado, a testemunha e a sua família precisam abrir mão de toda a vida comunitária. A assessoria de imprensa do órgão estadual garante que uma equipe fica empenhada na reinserção social dessas pessoas no local para onde são mandadas durante o processo. Mas não há qualquer garantia, por exemplo, de conseguir emprego a uma testemunha protegida que precise mudar de cidade.

O enquadramento de uma testemunha no Protege responde basicamente a duas variáveis: o risco real à sua vida e a importância das informações prestadas por ela no processo.
Uma vez incluído no programa, os dados dessa pessoa ficam sigilosos durante o processo.

Testemunhas na vida real
- A mãe de um adolescente de 13 anos levou um susto certa manhã do ano passado. No portão da sua casa, estava a mãe de outro jovem da Zona Sul da Capital. Ela carregava nas mãos, para surpresa da dona da casa, duas folhas com uma cópia do depoimento do guri na investigação que havia colocado o filho da visitante na cadeia. Além da Polícia Civil, do Ministério Público e da Justiça, só os defensores do acusado poderiam ter acesso a tal documento.

Com a garantia de impunidade, a mulher foi taxativa:

- Olha aqui o que o teu filho falou para a polícia. Ou ele vai lá e diz que é tudo mentira, ou o meu filho vai matar ele.

De acordo com os policiais envolvidos nessa investigação, o adolescente foi peça fundamental para esclarecer um assassinato. Teria descrito em detalhes a cena do crime e até a arma usada pelo jovem preso preventivamente.

Neste caso, a família conseguiu se mudar da vila por segurança. E o caso rendeu um inquérito por coação de testemunha durante o processo.

- Há meses, um rapaz de 23 anos estava proibido por traficantes da região, na Zona Sul da Capital, de voltar à casa da mãe. Motivo: foi testemunha na investigação da morte de seu irmão, no ano passado.

Há duas semanas, ele arriscou e, quando saía do local, foi emboscado e morto por criminosos. Quando os policiais chegaram ao local, a irmã adolescente começou a falar sobre o crime. Seria um depoimento fundamental ao inquérito. Seria, mas não foi.

A menina foi proibida pela mãe de falar com os agentes. E tinha motivos de sobra para isso.

- Já perdi um filho, dois filhos, um deles só porque falou com a polícia. Não quero perder mais uma - desabafou aos policiais.

- Os matadores invadiram a casa, em Alvorada, quando a família estava reunida. Sem qualquer temor, puxaram para fora o dono da casa e o seu cunhado - que seria o alvo do crime por uma dívida do tráfico. Enquanto os dois homens eram levados a um matagal, onde seriam executados a tiros, um dos bandidos ficou de guarda no portão da casa. Coube a ele o recado para garantir a lei do silêncio:

- Quero que todo mundo fique quieto. Se alguém procurar a polícia e falar alguma coisa, nós vamos saber. E vamos matar também.

No dia seguinte, os moradores, assustados, foram embora dali. Dois dias depois, quando voltaram para buscar suas roupas, comprovaram que os criminosos ainda vigiavam a residência.

As obrigações/direitos da testemunha
- Pode ser presa por falso testemunho.
- Pode pagar multa por se ausentar de audiências durante o processo.
- Pode ser conduzida por força policial para comparecer a audiências.
- Tem seus dados disponibilizados durante o processo aos representantes do acusado, como forma de garantir a ampla defesa.
- Ameaçada, a testemunha pode depor em juízo sem a presença dos acusados.
- A qualquer denúncia de ameaça, também pode ser solicitada a prisão dos suspeitos por interferência no processo.
- Pode ser incluída no Programa Estadual de Proteção, Auxílio e Assistência a Testemunhas Ameaçadas (Protege) se tiver o seu nome aprovado pelo conselho do programa, conforme os critérios de importância do seu depoimento e risco à sua segurança.
- Se for incluída no Protege, precisará abrir mão da sua vida comunitária. Teoricamente, passará a viver, durante o processo, com o auxílio do Estado.

A testemunha "sem rosto"
- Em 2003, a Corregedoria-Geral de Justiça de Santa Catarina oficializou, pelo Procedimento nº 14/2003, a ferramenta que prevê o sigilo de dados de uma testemunha.
- O depoente tem todos os dados colhidos pela polícia repassados à Justiça. Abrir os dados durante o processo fica a critério do juiz responsável.
- Os dados do depoimento, porém, ficam todos disponíveis durante o processo.
- A medida tem sua constitucionalidade questionada, mas ainda não foi derrubada. Há o entendimento de que ela restringe o direito à ampla defesa.
- Na Capital, o inquérito que investiga a morte do publicitário Lairson Kunzler teve o uso da testemunha "sem rosto" pela 6ª DP. O depoimento da testemunha, cujo nome não foi revelado aos advogados dos suspeitos teria sido fundamental para identificá-los, mas as prisões foram logo derrubadas quando a Justiça aceitou a argumentação da defesa, contrária ao artifício.


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