Polícia



Violência doméstica

Espancamentos e ameaças de morte: os relatos de cinco ex-namoradas agredidas pelo mesmo homem  

 Thiago Guedes Pacheco chegou a ser preso em novembro, mas solto um dia depois. Agora, é procurado pela polícia

14/01/2020 - 09h18min

Atualizada em: 14/01/2020 - 09h37min


Leticia Mendes
Leticia Mendes
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Reprodução / Reprodução
Thiago Guedes Pacheco está foragido

Há mais de um mês Nadia Krubskaya Bisch, 36 anos, não consegue voltar para casa em Porto Alegre. Abrigada na residência de familiares, tem dificuldade para dormir e, quando consegue, acorda com sensação de estrangulamento. O trauma é resultado de uma madrugada de terror, no início de dezembro. Segundo a psicóloga, o ex-namorado Thiago Guedes Pacheco, 39 anos, contra quem possuía medida protetiva, tentou matá-la. O caso aconteceu 10 dias depois de ele permanecer uma noite detido e ser solto por decisão judicial. Ele foi indiciado por tentativa de feminicídio e teve a prisão decretada outra vez, mas não foi encontrado e é considerado foragido. 

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— É desesperador. A gente se sente sem proteção. Vivo presa. Não posso voltar para casa. Não posso ir no mercado, se não estiver acompanhada. A sensação é de injustiça, impunidade, de não ter segurança. Esse é o meu caso, mas sei que também é o de muitas mulheres. Que se sentem sozinhas e são julgadas — afirma Nadia.

Após expor o caso nas redes sociais, a psicóloga passou a ser procurada por outras ex-namoradas de Pacheco, que também relatam ter sido vítimas dele. Entre elas, uma nutricionista, de 34 anos, que chegou a se mudar do Rio Grande do Sul para não ter mais contato com o músico. Além de Nadia, outras quatro mulheres foram ouvidas pela reportagem. Elas relatam ter sido agredidas entre os anos de 2011 e 2019, quando a psicóloga foi vítima de tentativa de feminicídio.

Em 27 de novembro do ano passado, por conta de um descumprimento da medida protetiva que deveria impedir o músico de se aproximar de Nadia, ele acabou preso pela Polícia Civil. No dia seguinte, a Justiça decidiu soltá-lo, por entender que a psicóloga não estava em perigo, já que mantinha conversas por WhatsApp com o ex. “Assim, se houve quebra da medida protetiva, essa foi motivada por ambos os envolvidos. Por essa razão, determino a imediata soltura do representado”, decretou a juíza Marcia Kern, do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar.

— Ficou 24 horas preso e foi solto. Alegou que estávamos conversando. Ele tinha multa no meu carro, por conta de duas semanas que emprestei para ele trabalhar. Precisava que ele passasse para o nome dele. A gente conversou sobre isso. E foi a brecha para ele voltar a insistir. Foi isso que ele mostrou na Justiça — conta. 

Na madrugada de 8 de dezembro de 2019, Nadia chegava em casa quando encontrou com o ex em frente ao condomínio. A psicóloga conta que Pacheco pediu que ela o acompanhasse até o carro, onde tinha algo a entregar. Quando se aproximou do veículo, diz que foi jogada para dentro, teve a bolsa e o celular retirados das mãos.

— Começou a me dar tapas, puxões de cabelo. Me estrangulava, apertava meu pescoço e dizia: “Para de gritar. Vou te matar”. E eu sem respirar. Me jogava de volta dentro do carro. Me batia. Na terceira vez em que tentei sair, fiquei sem ar. Começou a ficar tudo escuro, meu corpo dormente. Só pensava que não podia apagar. Ele cerrava os dentes e dizia: “Dessa vez, vou te matar”. Então fingi. Amoleci o corpo, como se tivesse apagado.

Arrquivo pessoal / Arrquivo pessoal
Nadia ficou com hematomas nas pernas

Depois disso, Nadia conta que teve o corpo jogado para dentro do carro, mas permaneceu com as pernas para fora. Enquanto ele tentava fechar a porta, outra pessoa interveio. Questionou o que estava acontecendo e disse que queria falar com a mulher. Foi esse motorista que a levou até um posto, onde a Brigada Militar foi chamada. 

Fisicamente, a psicóloga ficou com hematomas no rosto e no corpo, fraturas nos joelhos e dificuldade para engolir. Emocionalmente, ainda não sabe quanto tempo levará para superar o trauma.

— Acordo com sensação de estrangulamento. E tem a culpa, a vergonha de ter me envolvido. Nunca tinha vivido um horror desses — diz.

O histórico

Nadia conta que a relação se iniciou em 2018, mas diz que, no começo, o namorado não era agressivo, embora demonstrasse ciúme. Costumava mexer em seu telefone, aparecia sem avisar na casa ou no trabalho, insistia nas ligações e queria que ela respondesse onde estava. A psicóloga conta ter sido vítima da primeira agressão em agosto daquele ano. Ela rompeu a relação e tentou registrar na Delegacia de Polícia, mas o sistema estava com problema e ela acabou desistindo. O primeiro boletim de ocorrência foi registrado após ser perseguida no trânsito. Ela obteve medida protetiva. Mas acordou com o ex dentro de casa. 

— Ele me tocou para cima da cama, tapou minha boca e disse que ia me matar — relembra. 

Como ainda não havia sido notificado oficialmente sobre a medida protetiva, Pacheco não foi punido pelo descumprimento. Nadia diz que ele insistia para retomar a relação e chegou a frequentar um grupo reflexivo para agressores por três meses. Em outubro do ano passado, ela chegou a pedir para que o porteiro do prédio onde possui consultório lhe acompanhasse até o estacionamento. Mesmo assim, quando o funcionário se afastou, o ex apareceu. 

— Estava transtornado, agressivo. Me ameaçava dizendo que ia me jogar ácido, até meu rosto derreter. E eu segurando a porta para ele não conseguir entrar. Me perseguiu no trânsito. Tocava o carro por cima de cima. Gritava que ia mandar me matar — conta. 


Outros relatos

Além da psicóloga, a reportagem ouviu o relato de outras quatro mulheres que relatam ter sido vítimas de violência doméstica cometida por Thiago Guedes Pacheco. 

Juliana Dreissig, 38 anos, assistente social
"Mantive relacionamento com ele há cerca de nove anos, mas comecei a ver que o ciúme era excessivo. Quando comecei a me afastar, veio a primeira agressão. Me trancou em casa e me ameaçou com faca. Levou meu celular, meu note, e saiu. Aquele dia, tinha certeza que ele ia voltar e me matar. Consegui gritar para um vizinho, que me salvou. A partir daí, veio o calvário. Me perseguia de carro. Duas vezes cheguei e ele estava dentro da minha casa. Precisei me mudar e voltar a morar com meus pais. Para ir ao trabalho, era escoltada pelos colegas. Chegava, e ele estava na porta. Trocava de número de telefone e ele descobria. 

Fui agredida fisicamente quatro vezes. Em duas, fiquei com rosto desfigurado. Mas violência moral, psicológica, perdi as contas. Registrei na polícia desde a primeira agressão. Tive medida protetiva. Cada vez que ele descumpria, registrava. Entrava no carro e achava que ele estaria atrás. Chegava em casa e tinha sensação de que havia alguém. Fiz terapia muito tempo. Demorei para voltar a ter vida normal. Hoje consigo falar da situação. Espero que ele seja preso, para não fazer com outra. É isso que me mobiliza." 


Funcionária pública, 37 anos — não quis ser identificada
"Conheci ele em 2013. Quando resolvi dar um ponto final, em setembro de 2014, porque ele era muito possessivo, começou toda a situação. Ao todo, foram quatro medidas protetivas, a última em agosto de 2018. Foram muitas ameaças, agressões. Me esperava na saída do trabalho, me abordava no shopping, no trânsito. O mais grave foi um soco e um mata leão. Em outro caso, me levou para uma estrada deserta e fez  tortura psicológica por horas. Todo o tempo dizendo que ia me matar, enquanto olhava meu telefone. 

Cada vez que ele entrava em contato, eu fazia registo. Entre medidas protetivas, foram quatro. Ocorrências, várias. Nem sei quantas. Até hoje, nunca mais me relacionei com ninguém. Fiz tratamento com antidepressivos, por quatro anos, com medicações. O trauma foi bem grande. A qualquer momento, até hoje tenho sensação de que ele vai estar no meu prédio. Planta um medo que a gente leva para sempre". 

Manoela Etielle Gomes Pinto, 33 anos, professora
"Em março de 2016 começamos a namorar. Demorei para perceber que o comportamento não era normal. Achei que não estava acostumada. No dia 17 de abril, foi a primeira vez que me agrediu porque não quis ir num local onde ele ia tocar. Ele queria ir com meu carro e eu disse não. Estava cochilando no sofá e acordei com ele batendo no meu rosto com meu celular. Inchou na hora. Dali em diante, só piorou. Nunca tinha passada por isso. Não sabia a quem recorrer. Passei a ser agredida constantemente. Me batia, escondia meu telefone, não me deixava sair para trabalhar, pulava o muro da escola onde eu trabalhava. 

Um dia, cheguei em casa, ele desligou as luzes e começou a me bater. No primeiro soco, ainda estava com meu filho no colo. Não tinha para onde correr. Ele batia, me levantava, me chutava, eu caía. Batia na cabeça e no estômago. Não aguentava mais. Cheguei a me fingir de morta. Até que comecei a concordar com ele. Pedi perdão. Então ele parou, me maquiou e disse: "Vamos na tua mãe. Mas não fala nada". Naquela madrugada, fiz o primeiro registro. Mas ele continuava, descumpria a medida, pedalava a porta, me seguia de carro, a pé. Deu uma paulada no meu carro. Hoje estou casada. Mas ainda faço terapia. Tomo antidepressivo. Tu tem pesadelos, acha que qualquer pessoa pode ser ele. É uma luta tão solitária, uma luta tão tua."  

Nutricionista, 34 anos — não quis ser identificada
"Conheci ele num evento em 2011, em Porto Alegre. Com o tempo, começou a demonstrar que era uma pessoa muito ciumenta. Enquanto eu estava tentando terminar, uma ex dele entrou em contato comigo e fui encontrar com ela. Estava desfigurada. Fiquei nervosa e decidi terminar. Um dia, ele estava na porta da minha casa, me fez entrar, pegou uma faca na gaveta e colocou no meu rosto. Disse que ia rasgar todo. Pegou meu telefone e me mandou ficar quieta. Passou a noite toda lá, só foi embora no outro dia.Como eu morava sozinha, não tinha família próxima, tinha vergonha de pedir ajuda. 

Outra vez ele apareceu na minha porta, colocou a mão cobrindo minha boca e meu nariz e disse que ia me matar. Torceu meu braço. Foi quando eu fui para a delegacia. Recebi medida protetiva, mas aquele papel não tira o agressor do teu caminho. Pedi demissão do meu emprego. Ou passava a vida inteira sendo agredida, ou tinha de fugir de alguma forma. Decidi ir embora para Brasília, para  a casa dos meus pais. Foi a única forma de colocar fim na relação. Comecei a fazer terapia. A gente se enclausura por um tempo. Tinha medo de ter uma nova relação, não só amorosa, como de amizade. Hoje sou uma pessoa normal, mas foi difícil, doloroso e complicado. A maior dor era ver que ele seguia se relacionando com outras. Eu sabia que iam passar o que eu passei. Que haveria uma próxima vítima."

“O Estado tem de cuidar das mulheres”,  afirma advogada

A advogada Gabriela Souza, que acompanha o caso de Nadia Krubskaya Bisch entende que Pacheco não poderia ter sido solto pela Justiça e que isso colocou a vítima em risco.

— Os juízes que trabalham com medida protetiva têm a obrigação de entender o que é o ciclo da violência e como as mulheres ficam dependente dele, com medo de romper a relação. O Estado tem de cuidar das mulheres. O que fizeram foi liberar um agressor contumaz e convocar audiência para mais de um mês depois. Ele só não matou ela porque um anjo (motorista que interrompeu agressão) apareceu. Ele fez o papel do Estado naquele momento — afirma.

Após este caso, Pacheco teve novamente a prisão preventiva decretada pela Justiça. A titular da Delegacia da Mulher de Porto Alegre, Tatiana Bastos, define o foragido como um “agressor contumaz”, já que seu comportamento se repete. No caso de Nadia, conforme a delegada, ele foi indiciado por tentativa de feminicídio.

— Ele foi muito agressivo com a vítima — relata a delegada.

Segundo Tatiana, em todos os inquéritos abertos contra o suspeito foram tomadas as providências legais. A delegada afirma ainda que solicitou a prisão preventiva de Pacheco em dois casos: primeiro, devido ao descumprimento da medida protetiva de Nadia. Ele foi preso em 27 de novembro e solto um dia depois, por decisão judicial. Em dezembro, novo pedido foi feito, dessa vez pela tentativa de feminicídio:

— Apesar das nossas diligências, não conseguimos prendê-lo.

O que diz o Tribunal de Justiça

Segundo o TJ, “a revogação da prisão ocorreu porque, após, a decretação da medida protetiva, houve encontro consentido entre o casal, combinado por livre e espontânea vontade. Dessa maneira, não sendo caso de quebra da medida protetiva (pois o encontro foi planejado por ambos), a juíza entendeu que se impunha, naquele momento, a decretação da liberdade provisória.” Sobre o fato de a primeira audiência ter sido agendada somente para 15 de janeiro, a Justiça respondeu que “deve-se ao grande número de casos atendidos pelo Juizado da Violência Doméstica e Familiar da Capital”.



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