Crime organizado
Investimento na bolsa, criptomoedas, carros de luxo e conta bancária em nome de criança: como facção paulista operava no RS
Após operação ser deflagrada contra esquema que movimentava R$ 12 milhões mensais, polícia divulga áudios obtidos durante a investigação
É pelo menos desde 2017 que a maior facção criminosa do Brasil, que atua em vários pontos do país a partir de presídios em São Paulo, opera no Rio Grande do Sul. Se antes havia indícios de associações no tráfico de armas e de drogas, agora a Polícia Civil afirma ter provas da movimentação financeira mensal de R$ 12 milhões por meio de uma rede de operadores que vendem entorpecentes enviados aos integrantes gaúchos e remetem os valores para cerca de cem contas bancárias.
Conforme a investigação, o esquema — alvo de operação deflagrada nesta terça-feira (20) em sete Estados — conta com 45 operadores no RS, comandados por um detento na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc). Ele é apontado como elo gaúcho da rede, enquanto um baiano, que está em presídio na região metropolitana de Belém (Pará), é o elo nacional.
Um dos operadores, por exemplo, é uma garota de programa que atua para a organização criminosa. A polícia descobriu que, atualmente, ela está em Dubai, nos Emirados Árabes.
De acordo com a investigação, o grupo comprou dois imóveis, um prédio com vários apartamentos e outro onde funcionou uma boate em Novo Hamburgo, no Vale do Sinos, além de usar veículos de luxo. No total, 22 foram apreendidos nesta terça-feira, incluindo uma Mercedes avaliada em R$ 400 mil. Também foram localizados R$ 160 mil em vários locais onde houve buscas.
Contudo, o esquema, que também tinha lavagem de dinheiro, não se restringia apenas à compra de bens, mas em um emaranhado de transações financeiras com depósitos de pequenos valores — para não chamar a atenção das autoridades — em contas de laranjas, alguns sendo apenas as chamadas "contas de passagem". Até o nome de uma criança foi usado.
A organização tinha ainda outros investimentos, como em criptomoedas e na bolsa de valores de São Paulo. Além de fotos de encontros, quebra de sigilo bancário e fiscal e monitoramento, áudios revelam como a facção de São Paulo operava em solo gaúcho.
O titular da Delegacia de Lavagem de Dinheiro do Departamento de Investigações do Narcotráfico (Denarc), Adriano Nonnenmacher, afirma que comprovou tudo desde 2017, mas não divulga nomes envolvidos. Segundo ele, somente em relação aos bens o valor pode chegar a R$ 3,5 milhões quando a Polícia Civil analisar todos os documentos apreendidos e as movimentações financeiras. A investigação contou com o apoio do Ministério da Justiça.
Áudios da investigação
Durante a investigação, forças de segurança do Estado apreenderam cinco toneladas de maconha, duas toneladas de cocaína e dezenas de armas do grupo.Em um dos áudios divulgados pela polícia, os criminosos falam em códigos sobre envio de meia tonelada — "500 peças" — de cocaína ao RS:
Em outra gravação, integrantes de facções, do RS e de São Paulo, falam sobre o pagamento de mais de R$ 2 milhões:
Em uma terceira mensagem, um integrante de facção gaúcha fala sobre vínculo do suspeito conhecido como "baiano", integrante de facção paulista, que mantém operação no RS:
Integrantes falam de valores durante uma quarta gravação. Um deles destaca que está devendo uma pequena quantia, o que, para ele, é de R$ 9 mil:
Por fim, integrante de facção paulista envia um recado para um dos líderes da facção gaúcha, após operarem juntas em território gaúcho:
Criança usada como laranja
Extratos bancários e relatórios fiscais confirmaram uma movimentação mensal de R$ 12 milhões das pessoas físicas e jurídicas investigadas. Para a polícia, essa união criminosa se tornou o maior esquema de venda de drogas e de lavagem de dinheiro no Rio Grande do Sul.
Para surpresa da investigação, uma destas contas vinculadas à facção gaúcha como forma de lavagem de dinheiro pertence a um menino de apenas sete anos de idade e que reside em Santa Maria, na Região Central. O diretor do Denarc, delegado Vladimir Urach, diz que os pais dele estão entre os investigados que tiveram mandados de prisão indeferidos pela Justiça.
— A criança tinha uma conta bancária, já bloqueada a nosso pedido, de passagem, ou seja, para triangulação financeira entre laranjas em um emaranhado de outras contas — explica.
Os suspeitos fizeram todos os documentos do menino para poder abrir a conta bancária.
Movimentação financeira
A lavagem de bens e ativos por parte do esquema, desde quando a facção paulista passou a operar no Estado de forma associada à facção gaúcha, não fica restrita a depósitos bancários: para dificultar o rastreamento, contas criadas eram abertas e fechadas constantemente, em curto espaço de tempo, e sempre usando pequenas quantias.
Os grupos também abriram empresas de fachada em outros Estados. Muitas delas eram revendas de automóveis, com o objetivo de que também pudessem usar vários veículos, a maioria de luxo, e todos em nome de laranjas.
— Um deles usava uma Mercedes avaliada em R$ 400 mil e descobrimos porque eles gostavam de ostentar. E eles trocavam de automóveis a todo momento — explica o diretor de Investigações do Denarc, delegado Carlos Wendt.
O delegado Nonnenmacher, responsável pelo inquérito, ainda ressalta que os integrantes das duas organizações usavam dinheiro em espécie, em várias ocasiões, com o objetivo de dificultar o rastreamento. Os criminosos também eram conhecidos por organizar festas, algumas delas para recepcionar integrantes da facção paulista que vinham ao Estado.
A polícia descobriu ainda que, por ano, eles abriam e fechavam várias empresas com trocas sistemáticas de sócios. E outro fato que chamou a atenção do Denarc foi que o grupo estaria usando doleiros, um gaúcho — que tem mandado de busca contra ele — e há suspeitas do envolvimento de um paranaense já investigado na Operação Lava-Jato.
Em princípio, há indícios também de que os ativos estavam sendo enviados para Bolívia, Paraguai e Colômbia — conversas e depósitos com pessoas desta nacionalidade foram captados, sobre grande quantidade de drogas e dinheiro —, além dos créditos vindos de outros Estados do Brasil para a célula gaúcha. O principal elo do grupo de São Paulo com o Estado, um baiano detido no Pará que mantém uma rede de operadores com o preso da Pasc, foi citado recentemente pela imprensa francesa por tráfico internacional de drogas entre Brasil e Europa.
Operação desencadeada
A chamada Operação Irmandade contou com 330 agentes no cumprimento de 72 mandados de busca e cinco de prisão preventiva — sendo dois contra suspeitos já no sistema penitenciário —, além da apreensão judicial de veículos e de imóveis no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Bahia e Pará. Com isso, o total de ordens judiciais chega a 252. Um helicóptero foi usado na ação.
As cidades onde a operação foi deflagrada são: Porto Alegre, Canoas, Sapucaia do Sul, Cachoeirinha, Estância Velha, Novo Hamburgo, Guaíba, Encruzilhada do Sul, Montenegro, Charqueadas e Quaraí, no Estado; bem como, Florianópolis, em Santa Catarina; Foz do Iguaçu, Londrina e Colombo, no Paraná; Ponta Porã e Campo Grande, no Mato Grosso do Sul; Porto Seguro, na Bahia; e na região metropolitana de Belém do Pará. Também houve diligências em São Paulo.
Passo a passo da operação
- Baiano, detido no Pará, por meio de gerentes, envia drogas e armas ao RS
- Baiano mantém sociedade com gaúcho detido na Pasc
- Do gaúcho preso na Pasc, a droga vai para outros grandes traficantes regionais do Estado
- Dinheiro da distribuição estadual é dividido em duas partes: como lucro/renda para a célula gaúcha e pagamento aos fornecedores nacionais
- Inicialmente, dois irmãos de São Leopoldo gerenciavam o grupo de laranjas
- Agora, o gerenciamento é feito por um gaúcho de Canoas, em prisão domiciliar em Florianópolis, que é o principal responsável pela logística dos demais operadores do RS e por enviar dinheiro para operadores da facção paulista
- A outra parte do dinheiro é referente ao lucro da facção gaúcha que vai para contas de laranjas do próprio Estado
- As contas bancárias são abertas e fechadas constantemente
- Depois disso, o dinheiro é enviado para compra e venda de carros, mas os veículos ficam pouco tempo com os criminosos e os lucros da distribuição de entorpecentes são retirados em espécie, para dificultar o rastreamento
- A suspeita é que parte dos lucros é gasta no Brasil, bem como valores são encaminhados aos integrantes da facção nacional e a esposas de integrantes gaúchos
- Recentemente, a suspeita é de que outra parte do dinheiro foi usada para aquisição de criptomoedas, investimento na bolsa de valores e enviada para fora do país por doleiros