Polícia



Crime organizado

Como "força aérea" do tráfico leva drogas com drones nas prisões do RS

GZH obteve imagens feitas por aparelhos usados para transportar entorpecentes, celulares e armas até os presídios

03/11/2021 - 09h42min


Humberto Trezzi
Humberto Trezzi
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Reprodução / Reprodução

A cena parece feita por satélite ou saída de filme de ficção. Mostra o pátio do Presídio Central de Porto Alegre (Cadeia Pública) repleto de homens que jogam futebol. Aí a câmera vai aproximando a imagem até que um pacote esbranquiçado que aparece em primeiro plano, do tamanho de uma bola, cai velozmente no meio dos presos. Logo um deles corre, pega o embrulho e o leva para dentro da prisão.

A gravação foi feita por criminosos e mostra eles mesmos introduzindo drogas dentro do Presídio Central. As imagens são feitas a partir de drones, os mesmos utilizados para levar entorpecentes, celulares, cabos, modens e até armas para dentro do sistema prisional.

Os bandidos gravam a entrega para que não haja dúvida de que a encomenda chegou ao destinatário. Questão de vida e morte. Caso a encomenda se perca, quem enviou tem de se explicar com o chefe da quadrilha.

Os céus não têm limites para a "força aérea" do tráfico. De alguns anos para cá, criminosos têm utilizado cada vez mais frotas que voam, sobretudo para entregar mercadorias ilícitas em presídios. Mas não apenas isso. O despacho de drogas também acontece entre bairros, para despiste das autoridades e das quadrilhas adversárias, como mostra esta reportagem.

Arquivos

O repórter fotográfico Ronaldo Bernardi teve acesso a vários vídeos e fotos, feitos por policiais e por criminosos, que mostram a penetração dos drones no sistema prisional. Em alguns casos, eles apenas soltam a carga de ilícitos, presa por garras do aparelho, no pátio dos presídios. Em outros, a linha de náilon que carregam é "fisgada" pelos presos entre as grades das celas, por meio de varas com um gancho na ponta.

Muitos sobrevoos são flagrados, e os números variam conforme o ano. De acordo com a Secretaria de Justiça, Sistema Penal e Socioeducativo, do governo estadual, em 2019 foram apreendidos 43 drones, quando pairavam sobre presídios. Em 2020, o número baixou e houve 12 capturas. Em 2021, há acréscimo e o volume de todo o ano passado já está superado, com 21 apreensões até o final de setembro.

A captura dos drones acontece basicamente de dois modos: ou porque os aparelhos perdem o sinal por terem sido utilizados em grande distância, ou porque são puxados por policiais militares (PMs) a partir dos próprios fios que carregam. Outros são confiscados pela Polícia Civil em investigações que chegam aos pilotos.

Os drones operam mais de dia do que à noite, nos presídios, para que os presos possam pegar as mercadorias. E não importa se chove ou faz sol. Os aparelhos estão cada vez mais potentes e sofisticados, com motores capazes de driblar ventanias.

A grande preocupação das autoridades é de que, na medida em que adquirem mais força motriz, os drones carregam mais peso. Já foram apreendidos alguns carregados com cinco quilos de celulares. Os telefones vão em sacos plásticos, pendurados em fios de pesca, quase imperceptíveis a distância. Alguns desses fios têm 200 metros de comprimento, o que possibilita que a aeronave fique virtualmente invisível, desde o solo.

— Na medida em que a pandemia avançou, a visitação nas prisões foi proibida, e os drones passaram a substituir as pessoas, na introdução de cargas ilegais nas prisões. As máquinas ocupam agora, na cadeia de ilegalidades, o lugar que já foi de familiares (alguns carregados de drogas, por exemplo) e dos arremessos de pacotes — diz o delegado Marco Aurélio Schalmes, da Delegacia de Polícia de Charqueadas.

Ações

Só nesse município, onde ficam seis presídios, a Polícia Civil realizou cinco operações desde 2018, com 20 aparelhos apreendidos. Em 2020, na Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ), a maior de Charqueadas e uma das maiores do Rio Grande do Sul, foram detectados 72 sobrevoos de drones. Desses, três aparelhos foram interceptados.

Outros dois foram capturados em 2021. Ao todo, 53 celulares foram confiscados por PMs que guarnecem aquela prisão após o avistamento dos aparelhos.

Os números de apreensões das demais prisões da região não foram revelados. O monitoramento dos sobrevoos acontece via sistema de vídeo dos presídios, interno e externo.

O Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc) também realizou três ações recentes envolvendo drones, com um preso. Foram apreendidos em Alvorada, em ação com a BM, um aparelho capaz de transportar dezenas de quilos, droga e sete controles dos aparelhos, relata o delegado Carlos Wendt, diretor do departamento.

GZH solicitou entrevista com a direção do Presídio Central. Até a publicação desta reportagem, não houve retorno do pedido.

O secretário Mauro Hauschild, titular da Justiça e Sistemas Penal e Socioeducativo, não quis se pronunciar por estar em viagem à Espanha, onde vai inclusive fechar projetos que envolvem a questão dos drones.

Jovem foi aliciado por facção

Como nos aviões, os drones são conduzidos por pilotos, que inclusive precisam de licença para atuar. Os comandos são dados eletronicamente, a distância, o que facilita seu uso por parte de criminosos e dificulta a interceptação de quem está guiando o equipamento não tripulado.

E quem são os pilotos? Investigações mostram que as facções criminosas têm aliciado pessoas de diferentes áreas, que utilizam drones. Elas são sondadas para levar uma carga, por um valor expressivo (de R$ 5 mil a R$ 10 mil).

— O que esses jovens não sabem é que a própria quadrilha os delata e eles caem presos. Aí ficam prisioneiros de compromisso com a facção. Não podem sair mais do crime — pondera o major Fabiano Henrique Dornelles, comandante da Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ).

O delegado Marco Aurélio Schalmes, de Charqueadas, diz que a primeira prisão de piloto de drone feita por ele foi a de um jovem que fotografava casamentos na região de Venâncio Aires e Santa Cruz do Sul. Ele foi aliciado por três apenados da Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc). O trio tem antecedentes por diversos crimes hediondos, como homicídio qualificado. Os quatro tiveram prisão preventiva decretada.

Drogas

Num outro caso, foi apreendido um adolescente de 17 anos. Na casa dele, foram encontrados 1,5 quilo de maconha, 150 gramas de cocaína e 14 aparelhos celulares, já embalados, ao lado de um drone. Segundo a polícia, o material seria lançado em sobrevoo a prisões de Charqueadas.

No terceiro caso, um apenado da Pasc foi preso e indiciado por receptar drogas enviadas por meio de drones para o presídio.

Ronaldo Bernardi / Agencia RBS
Sargento Sarzi e soldado Pofal

"Me agarrei na linha e fiz força", conta PM

Dois policiais militares (PMs) que fazem a guarda externa na Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ), a maior de Charqueadas, o soldado João Alberto Pofal e o sargento Valnei Sarzi Eich, levaram um susto na tarde de 19 de maio.

Foram avisados por um colega que estava numa guarita de que um drone sobrevoava a penitenciária. Viram uma linha prestes a largar um pacote no pátio interno e desceram até lá, correndo.

— Me agarrei na linha e fiz força. Mas bota força nisso. Nem enxergava o aparelho direito, fomos puxando, até que a bateria do drone perdeu força e ele pousou — recorda Pofal.

O sargento Sarzi graceja:

— Nunca peguei um peixe que desse tanto trabalho quanto esse aparelho deu com a linha de pesca. Era um drone agrícola, com cerca de 1m50cm de circunferência. Estava a uns 300 metros de altitude — descreve.

Os PMs dizem que ficaram com as mãos cortadas de tanto puxar o fio de náilon.

Resgate

Já na zona sul de Porto Alegre, há cerca de cinco meses, um empresário recorda de um episódio como se fosse hoje.

A ventania era forte, quase 80 km/h, calcula ele, que dormia tranquilo quando foi acordado por um estrondo. Achou que uma árvore tivesse caído. Mesmo sendo noite, abriu a porta da casa e fez uma vistoria. Nada à vista, só o vento uivante. Voltou a repousar.

No dia seguinte, ao sair da residência, deu de cara com um drone enorme, preso no telhado. Estava cravado entre as telhas.

Ele decidiu recolher, desmontar e guardar. No meio da manhã do dia seguinte, quatro jovens estacionaram em frente a sua casa e perguntaram se ele não tinha visto um drone pelas redondezas. Ele confirmou.

— Quero saber quem vai pagar o estrago. Minhas telhas francesas quebraram, até os caibros se romperam. Tive uns R$ 20 mil de prejuízo — disse o empresário aos rapazes.

O valor teria sido pago ao homem, e o equipamento, devolvido. A reportagem omite o nome do homem, a pedido dele. O empresário não quis registrar ocorrência na Polícia Civil por medo de represálias.

Relato de um piloto que foi preso

Morador de Porto Alegre, um jovem estudante de 21 anos, com amizades no tráfico e que desde os 14 maneja drones, foi recrutado para introduzir drogas e celulares em presídios. GZH conversou com ele ao ser preso pela Polícia Civil, na semana passada. Ele aceitou falar, mas desde que seu nome não fosse revelado. Atua para a facção Bala na Cara. Ele pilota o drone, mas dois parceiros vigiam as redondezas da pista de lançamento para evitar a polícia ou adversários no crime. Perder um aparelho, além de prejuízo de milhares de reais, pode representar a perda de carga valiosa de drogas.

O jovem diz que aprendeu a pilotar em tutoriais de redes sociais e que se sustenta só com entregas em presídios, mas parte vai para os dois comparsas. Um celular, dentro de presídio, pode ser revendido por R$ 10 mil. Cinco quilos de drogas — peso suportado por grandes drones — podem custar R$ 20 mil.


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