Sistema penitenciário
Histórias de amor atrás das grades do Presídio Central
O Presídio Central de Porto Alegre, principal prisão masculina do Estado, paradoxalmente tem as mulheres como responsáveis por sua maior movimentação. Por ano, são feitas mais de 250 mil visitas aos internos. Destas, cerca de 85% (220 mil) são realizadas por mulheres. São mães, filhas, esposas, companheiras, noivas, namoradas que moldam suas vidas a partir desta realidade. Além disso, por tabela, mesmo sem terem cometido qualquer crime, são socialmente condenadas, enfrentando estigmas e preconceitos.
Mas elas provam que, dentro das frias e escuras paredes do Central, também há lugar para o amor. No primeiro dia da série que segue até sexta-feira, o Diário Gaúcho fala de um dos momentos mais delicados - e esperados - na prisão: a visita íntima.
Fotos: Mateus Bruxel
Às 6h40min de uma quarta-feira, a empresária Paula, 44 anos, não esconde a ansiedade na fila de visitantes no Presídio Central. Dali a três horas e meia, mais ou menos, encontrará o companheiro, 22 anos mais jovem, preso por envolvimento no tráfico de drogas. E eles voltarão a manter relações sexuais.
Mudanças na vida sexual estão entre as principais transformações que ocorrem na rotina de mulheres, quando seus maridos, companheiros, noivos ou namorados são presos. O sexo passa a ter dias marcados e tempo cronometrado, nas chamadas visitas íntimas.
A ansiedade de Paula tem suas justificativas. Há algum tempo que ela e o companheiro não fazem sexo. Dois meses antes, ela dera à luz prematuramente, aos seis meses de gestação, uma menina, fruto de seu relacionamento com o jovem que agora está preso. Depois disso, foi surpreendida por um caso de traição.
- Depois de ganhar a filha, quando eu voltei aqui não me deixaram entrar e me disseram que ele tinha me "desligado" e "ligado" uma outra mulher - contou ela.
A partir da "liga", os encontros são organizados pelos próprios presos, nas galerias de cada pavilhão. Na maior parte dos casos, cada cela é dividida por um lençol pendurado, para que dois casais possam se relacionar simultaneamente. O tempo para a relação varia conforme o número de inscritos. Em uma das galerias, são 50 minutos para a relação e 15 minutos para o banho. Tudo controlado pelo "homem da planilha", um preso encarregado de organizar os encontros.
Apaixonadas e dedicadas
Paula perdoou a traição. Não esconde sua paixão pelo jovem que conhecera por redes sociais, quando ele ainda estava livre. A empresária já tinha quatro filhos, todos mais velhos que o companheiro: 29, 27, 25 e 24 anos, mas não relutou em engravidar novamente. A prisão dele por tráfico não abalou o relacionamento. Mesmo grávida, não deixou de ir ao presídio duas vezes por semana.
A mesma dedicação de Paula é demonstrada por Ângela Almeron, 31 anos, em agosto, no sétimo mês de gestação. Por sinal, engravidara em uma visita íntima. O marido cumpre uma condenação de nove anos por assalto.
- Ele estava desesperado. Era motoboy, havia sofrido um acidente e não estava recebendo o auxílio-doença. A gente tem outros dois filhos (um menino, de 12 anos, e uma menina, de quatro). Então, ele foi com um amigo arrombar uma casa. Não estava armado, mas, como tinha um menino no local, foi condenado por assalto - contou.
Quando engravidou na visita íntima, Ângela teve mais privacidade do que Paula. Como, na galeria em que seu marido estava havia menos presos, entrava um casal por vez e cada um dispunha de uma hora e meia para a relação.
- No início foi bem constrangedor, mas a gente acaba se adaptando. Meu marido nunca teve uma cela, ele sempre morou no corredor - afirma
Ângela, evidenciando o problema da superlotação carcerária do Central.
Adriana e Jorge: um casal feliz
"Durmo com a vigilância"
Em matéria de visita íntima, poucas devem ter aproveitado tanto quanto Adriana Aguiar Cardoso, 36 anos. Ela conheceu o companheiro, Jorge Luiz de Oliveira Gomes, 56 anos, quando ele cumpria pena no Presídio Central, na mesma galeria na qual estava o irmão dela. Adriana, então, passou a ter dois cadastros de visitante: um para o irmão, outro para Jorge.
- Eu ia três vezes por semana. Dava oi para o meu irmão e ia ficar com o Jorge - relembra.
Com bom humor, o companheiro, que cumpre o restante da pena em casa, monitorado por tornozeleira eletrônica, não perde a oportunidade de brincar com a mulher.
União já dura quatro anos
- Fiquei 20 anos preso. No início, com ela, eu estava acostumado com vida a dois em três dias por semana. Agora, depois que saí, convivo com TPM e outros problemas que nem lembrava como eram. Além disso, no presídio eu era vigiado, mas não como agora, quando durmo todos os dias com a vigilância ao lado - ri Jorge.
No total, eles estão juntos há quatro anos.
Vladimir visita o companheiro
Sem preconceitos no Pavilhão H
O preconceito impede o homossexualismo nas galerias do Presídio Central. Exceto em uma: a terceira do Pavilhão H. Nela ficam os travestis. É para lá que, duas vezes por semana, vai Vladimir Carvalho Cunha, 46 anos, chamado de Deise na fila de visitas. Seu companheiro está preso sob a acusação de tráfico. Vladimir é um dos raros casos de visitante "ligado" para encontros íntimos no Central. Recebeu autorização do juiz Sidinei Bruzska, da Vara de Execuções Criminais.
Solidariedade atrás das grades
Quando a visita é no final de semana, além da movimentação das mulheres, há ainda crianças e adolescentes, desde que filhos ou irmãos menores dos apenados, ou outros menores de 18 anos cuja guarda o preso possua. Os pequenos reafirmam comportamentos solidários entre os internos, pois, enquanto alguns pais entram na cela para os momentos de visita íntima, os "caídos" cuidam dos filhos dos colegas.
Na visita íntima, tempo é dinheiro
O sexo nos presídios por meio das visitas íntimas tem suas peculiaridades. Por ser cronometrado e num ambiente onde quase tudo vira objeto de barganha, até "instantes" são comercializados por presos que não utilizem todo o tempo que lhe é disponibilizado para a relação.
Porém, se isso pode significar algum dinheiro ou outra vantagem em troca, por outro lado, muitas vezes vira motivo de constrangimentos. Preso que conclui o ato em um tempo mais curto pode virar motivo de chacota e ser chamados de coelhinho.
Coelhinho é o preso que estabelece uma relação sexual muito rápida com a visita
A visita íntima também é apontada como responsável por mudanças comportamentais na vida do cárcere, ao longo do tempo. Ainda que sem comprovação científica, é creditado a esse direito aquirido pelos presos o fim da violência sexual no presídio.
Outras mudanças, apontadas pelos próprios presos, diz respeito à decoração das celas. Nas décadas de 80 e 90 eram comuns posters e fotos de mulheres nuas nas paredes. Agora, em respeito às mulheres que têm acesso às galerias, essa prática foi abolida.
Mulheres viram objeto de negociação
Mestre em Psicologia, Fernanda Bassani é autora da dissertação Visita íntima: o gerenciamento da sexualidade nas prisões do Brasil.
Pergunta - Em um lugar como a prisão há espaço para que a sexualidade seja desenvolvida de forma natural?
Fernanda - Não, de maneira alguma. Em megaprisões, como é o caso do Presídio Central, ou em prisões superlotadas, como é típico do Brasil e do momento histórico atual, é impossível o desenvolvimento de uma sexualidade sem interferências perniciosas da dinâmica prisional.
Pergunta - E quais os maiores problemas desta dinâmica?
Fernanda - Com base em minhas pesquisas, pude constatar que um dos principais fatores que influenciam a sexualidade no cárcere é sua submissão à dinâmica comercial que atualmente rege as cadeias. Assim, muito facilmente as mulheres acabam se transformando em objeto de negociação, status, ou meio para obter algum outro benefício, que não apenas afeto ou sexo, conforme prevê o mecanismo da visita íntima.