Provisório
"Ficamos para cuidar do pouco que restou": enquanto água não baixa na região das ilhas, famílias vivem em barcos
Mesmo que a região continental de Porto Alegre trabalhe para retomar a normalidade, no bairro Arquipélago a água ainda precisa baixar mais para que famílias comecem a acessar suas casas.
Quando o Guaíba emparelhou com o Cais Mauá, no centro de Porto Alegre, uma sensação de retomada da vida normal correu pelas vielas históricas nas quais a Capital nasceu. Porém, não tão longe dali, a enchente ainda parece mais distante do fim.
Quem vai na hoje embarrada Usina do Gasômetro e olha para o "outro lado" do Guaíba vê o que parece uma densa mata. É que a água ainda não baixou o suficiente para devolver a aparência litorânea da Ilha Mauá — uma pequena comunidade ribeirinha na ponta sul da Ilha da Pintada. Os deques, bares e casas estão submersos, além de um incontável número de embarcações que sucumbiu à correnteza dos primeiros dias de maio.
Na região do Arquipélago, o bairro que agrega as ilhas de Porto Alegre, o nível de inundação é cerca de 1 metro menor do que no continente. Ou seja, mesmo depois do Guaíba atingir um nível menor no Cais, muita água ainda precisa correr até a Lagoa dos Patos e escoar no Atlântico. Isso para permitir que os moradores das ilhas ensaiassem um retorno para casa — o que ainda não é possível.
Mesmo assim, há quem tenha ficado na região, não propriamente nas ilhas, mas morando provisoriamente em barcos. Como o Jacuí e o Guaíba ainda invadem casas e uma grande quantidade de areia que foi arrastada para terra firme impede o trânsito, algumas famílias aguardam embarcadas a retomada do nível normal dos cursos hídricos da região.
A reportagem do Diário Gaúcho acompanhou um dia na rotina de parte deste grupo, abrigada no que antes era um recuo assoreado do Jacuí, próximo da ponte que liga as comunidades Pintada e Mauá.
Destruição na Ilha da Pintada assusta
O Guaíba calmo da última da última terça-feira pouco lembrava a fúria dos dias mais severos da enchente de maio. Por volta das 15h30min, a reportagem encontrou o mecânico de barcos Pablo Silveira, 43 anos, na Usina do Gasômetro. O que antes era ponto de partida para passeios turísticos, agora serve como um terminal informal para levar e trazer suprimentos e pessoas das ilhas à Capital e vice-versa.
A pequena embarcação, para quem desconhece a água, parece insuficiente para atravessar o Guaíba. Ledo engano: em menos de cinco minutos, Pablo já apresentava os estragos deixados pela água na margem oposta. Casas com paredes derrubadas pela força das ondas fazem fila na margem. Na Ilha da Pintada, a grande quantidade de areia nas ruas assusta. Aquele lento movimento de dunas que tomam casas abandonadas no litoral foi reproduzido em velocidade muito maior na Pintada.
Em pontos onde a água baixou, a areia fica. São bancos que superam facilmente 1 metro de altura. Pablo mostra o que restou da oficina de onde tirava parte do sustento. O local também tinha uma pequena casa. A parede foi arrancada e apenas a armação de uma cama restou entre os móveis. O aparelho de solda usado nos barcos, Pablo tentou amarrar num ponto mais alto para evitar estragos. Não adiantou. Hoje ele está exposto, mas a água alcançou o equipamento em dias anteriores.
— Olha como ficou minha casinha — desabafa ele, calculando prejuízos em mais de R$ 250 mil.
Parece clichê citar, mas Pablo conhece a água como a palma da mão. Vai apontando locais com precisão, contando histórias suas e de vizinhos, de pontos turísticos e comércios da ilha como se ainda estivessem ali. Mas aponta apenas para a água.
— Aqui era um píer lindo, ali um restaurante. Neste outro local faziam churrasco todo final de semana — mostra ele, indicando um ponto submerso da vista e vívido apenas na memória do homem criado no Arquipélago desde que nasceu.
Pablo também conta do sem número de embarcações afundadas, outras reviradas pela correnteza. Numa das cenas mais impressionantes, dois barcos estão embrenhados um sobre o outro, ao lado do que parece ser a copa de uma árvore. Entre as embarcações e os galhos, é possível ver uma Kombi com para-brisas quebrados e uma porta lateral arrancada. A água ainda bate na metade da porta da Kombi.
Não muito distante dali, uma lancha com mais de 30 metros tem apenas parte da proa exposta, onde se vê gravado o nome Lindona. Está enfiada na água como se tivesse sido atropelada por um velho rebocador parado sobre ela. Mas foi a força da água que jogou Lindona para debaixo do imponente barquinho.
— Quando a correnteza desceu dos rios pro Guaíba, foi levando tudo. A água subiu e os paus onde os barcos estavam amarrados foram ficando submersos. Se a corda não arrebentou, prendeu o barco e o puxou pro fundo. Se arrebentou, fez ele sair desgovernado. E foi assim, um se revirando por cima do outro. Tenho certeza de que mais de cem barcos estarão aí no fundo quando a água baixar — aposta Pablo, incluindo na conta duas embarcações suas que também foram perdidas.
Abrigados em lanchas e embarcações menores
Exposta a destruição deixada pela força da água na parte sul do Arquipélago, Pablo conduz a reportagem para a casa provisória onde está abrigado com a esposa, Carla Drower, 35 anos, e o cão labrador Neni, de um ano e oito meses. Uma lancha com espaço suficiente para o casal, com banheiro, cozinha e um quarto improvisado. O barco está abrigado num recuo do que antes era um canal assoreado do Jacuí, próximo da ponte que liga as ilhas Pintada e Mauá. No canto oposto ao da correnteza, vários barcos estão emaranhados, como um forte.
A alguns metros, uma grande embarcação de carga parece proteger o grupo da força da água, mas na verdade é um retrato da luta pela sobrevivência. Nos primeiros dias de enchente, a embarcação estava ancorada num antigo estaleiro na Ilha da Pintada. A areia tomou o local atualmente. Com a correnteza, o grande barco desprendeu-se e desceu pelo Jacuí até ser jogado para o recuo onde as famílias se abrigavam.
— Foi um desespero, achamos que íamos todos morrer. Tiramos as crianças daqui e boa parte das famílias, que foram para abrigos. Usamos estas lanchas onde estamos abrigados para segurar o barco que avançava contra nós. Enquanto isso, com uma embarcação menor, fui me enfiando pelo mato alagado e prendendo cordas nas árvores e nele — recorda Pablo, que calcula cerca de 10 amarrações prendendo o cargueiro na margem. Com a baixa parcial da água, os ribeirinhos também acreditam que o barco tenha assentado no fundo do canal.
Abrigados participaram de salvamentos
No pequeno condomínio de embarcações onde vivem provisoriamente as famílias, cerca de sete lanchas e outros barcos menores se emaranham. Mas o cenário não é de barcos "normais". Galões de água mineral, geradores, rodos para limpeza da lama e muitos itens encontrados na enchente estão acumulados sobre os conveses. Molinetes de pesca, remos, coletes salva-vidas e até uma prancha de stand up paddle aguardam o reencontro com os donos.
— Eu prometi que não quero nada que não seja meu. Tudo que achei estou guardando na esperança de que chegue aos donos novamente — conta Pablo, que acompanhado da esposa, usou seu pequeno barco nos primeiros dias da enchente para salvar cerca de 600 cães e gatos, além de outras mil pessoas, calcula.
Mas entre os itens, também há coisas muito pessoais. No convés da lancha de Pablo e Carla, um álbum do aniversário de um ano da filha do casal espera o sol secá-lo. Os dois filhos deles estão abrigados na casa de parentes, na Capital.
Família Maciel perdeu casa nas ilhas e banca no Mercado Público
Na lancha ao lado de Pablo e Carla, vive a família de Ilza Maciel, 58 anos. No momento, além dela, estão na embarcação o marido, Jorge Maciel, 64 anos, o genro e uma filha. Três cães, dois gatos e uma calopsita completam a trupe. Durante a visita da reportagem, entretanto, o movimento estava calmo. Parte da família e um dos cães, batizado de Rambo, estava em missão na casa dos Maciel.
— Foram tentar recuperar um lava-jato que ficou submerso. Vão tentar fazer funcionar para limpar a casa depois — conta dona Ilza enquanto pede que a pequena cachorrinha Leidy, menos feroz que Rambo, pare de latir.
Na proa da embarcação, Ilza estende as roupas que são lavadas com a água da correnteza. Apesar do dia nublado, a expectativa era de que as poucas mudas que sobraram estivessem logo disponíveis para serem usadas. Além de pouca roupa, quase que a família ficou sem embarcação também. Quando a água subiu, os Maciel já tinham alinhado a venda da lancha que hoje os abriga. A família até tinha uma segunda embarcação, mas o motor não dava partida. Precisaram desfazer o negócio para ter onde permanecer.
As perdas do grupo foram duplas, pois além da casa, também viram o Guaíba invadir o Mercado Público, onde administram o açougue Big Bife. Antes da água atingir as carnes, até conseguiram esvaziar uma câmara fria e armazenar a mercadoria num contêiner refrigerado em Alvorada. Mas o alagamento também chegou lá, causado a perda total na loja e no estoque.
— Ainda nem conseguimos limpar todo o açougue. Na nossa casa, a água ainda está entrando, não temos muito o que fazer no momento — lamenta Ilza, enquanto varre o convés.
Auxílio para voltar a trabalhar
Com o cair da tarde e a noite querendo se avizinhar, a vida nos barcos fica mais escura. Quem também costuma se acampar ali é Márcio Silva, 47 anos. Ele tem ajudado pesquisadores do Instituto de Geociências e do Instituto de Pesquisas Hidráulicas, ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) a medir a vazão do Guaíba.
Assim como Pablo, ambos usam suas embarcações para prestar serviços náuticos, que vão desde transporte de pessoas, itens, passeios e ajuda em pesquisas. No dia da visita da reportagem, Márcio estava em navegação. É ele quem disponibiliza o gerador para que a pequena comunidade embarcada tenha energia elétrica nas primeiras horas de noite.
Antes de sair, Márcio deixou o gerador numa lancha vizinha, onde estão abrigados três pescadores: José Carlos Lopes, 59 anos, seu filho de mesmo nome e o sobrinho Edimar Marques Ribeiro, 41 anos. José Carlos Filho tentava fazer o gerador funcionar, mas foi Pablo quem detectou rapidamente o problema: falta de combustível. José pai e os outros dois homens ficaram na Mauá para manter o cuidado sobre itens de sua propriedade que ainda restaram. Esposas, filhos, enteados, todos foram para abrigos espalhados pela Capital.
— Ficamos para cuidar do pouco que restou. Os nossos barcos de pesca ainda resistiram, mas as redes, freezers, nossas casas, tudo foi perdido — lamenta José Carlos.
Enquanto comemoravam a empreitada de colocar o gerador em operação, Edimar relatava apreensão para o cenário que verá quando a água baixar.
— Tem muita areia nas ruas. A estação de água das ilhas não existe mais. Estamos sem luz também. Vão ser meses de trabalho para tentar recuperar o mínimo — estima o pescador.
Quando a enchente apertou, o pequeno canal onde os ribeirinhos estão hoje era um ponto de encontro dos resgates. Famílias eram levadas até a pequena porção da ponte que liga Mauá e Pintada que não estava submersa. Dali, eram embarcadas rumo ao Gasômetro, em cenas que ficaram marcadas para a história. Edimar diz que ele e os outros ribeirinhos atualmente abrigados em barcos na Mauá ajudaram em grande parte dos resgates. Mas sentem que a prefeitura ainda não olhou de maneira suficiente para o outro lado do Guaíba.
— Precisamos que o poder público chegue aqui. Vamos precisar de muito auxílio quando a água baixar, de atendimento de pessoas de verdade — aponta Edimar.
— Se nos ajudarem ao menos com nossos instrumentos de trabalho, conseguiremos voltar a pescar e tirar nosso sustento — completa José, que preparava um feijão para o jantar na cozinha do barco em que está abrigado.
Com energia do gerador garantida pelas próximas horas, a turma preparava-se para o cair da noite. Iluminado pela pouca luz natural que ainda restava, Pablo transportou a reportagem de volta ao Gasômetro. Agradecido pela visita, partiu em direção ao pôr-do-sol que se estendia pela Capital na tarde de terça-feira.