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Programa que ajudou a divulgar o tradicionalismo no rádio gaúcho, Grande Rodeio Coringa estreava há 70 anos

Transmitido pela Rádio Farroupilha em 1º de maio de 1955, projeto foi pioneiro na apresentação de artistas locais e firmou Darcy Fagundes como importante nome da declamação e da expressão artística no Estado

06/05/2025 - 14h59min

Atualizada em: 06/05/2025 - 14h59min


Diário Gaúcho
Diário Gaúcho
Arquivo Pessoal/Arquivo Pessoal
Grupos de todas as regiões do Estado passaram pelo programa e consolidaram uma cultura tradicionalista.

Há exatos 70 anos, o Grande Rodeio Coringa, primeiro programa de auditório do rádio gaúcho dedicado à música e aos temas tradicionalistas, estreava na Rádio Farroupilha. Ao longo dos anos em que foi ao ar o Grande Rodeio lançou artistas locais e ajudou a difundir no gosto dos ouvintes um recém-nascido movimento tradicionalista no Rio Grande do Sul.

O programa se tornou uma das principais atrações da emissora, então dona da maior audiência do Estado, e lançou músicos, declamadores e poetas que ainda hoje são referência na cultura e nas artes do Estado.

Em março deste ano, a Comissão Estadual dos Festejos Farroupilhas escolheu os 70 anos do Grande Rodeio como tema dos Festejos Farroupilhas de 2025. Com a efeméride, também foi homenageado o centenário de Darcy Fagundes, seu principal apresentador.

"Ondas curtas para uma história longa – O centenário de Darcy Fagundes e os 70 anos do Grande Rodeio Coringa" homenageia uma relevante figura da arte e do tradicionalismo gaúcho e sua colaboração para a tradição cultural do RS, disse o comunicado da comissão.

Na entrevista que concedeu ao projeto Resgate Vozes do Rádio, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), o folclorista Paixão Côrtes (1927-2018) exaltou a contribuição do programa para o movimento tradicionalista, que dava seus primeiros passos: 

— (O Grande Rodeio) reformulou toda a história da fonografia rio-grandense, na comunicação dos temas regionais mais singelos, mais puros, dançando, cantando, apresentando as invernadas artísticas e abrindo um caminho para os grandes cantores populares, grandes intérpretes, e grandes músicos. 

Ao lado de seu amigo Darcy Fagundes (1924-1984), Paixão Côrtes foi o primeiro apresentador do programa. Porém, seu período no comando da atração durou pouco. Após um atrito com a direção da emissora, em 1956, Darcy assumiu o microfone, que dividiria nos anos seguintes com Dimas Costa e, depois, com Luiz Menezes.

O “coringa” do nome vinha do patrocínio da empresa São Paulo Alpargatas S.A., dona da marca de tecido Brim Coringa. O contrato durou até 1969. Naquele ano, o programa manteve a forma, mas passou a se chamar Grande Rodeio Farroupilha e, anos mais tarde, Grande Rodeio Farroupilha em Noite de Gala.

Surgimento

A atração era dividida em cinco "invernadas": duplas ou trios; poetas ou declamadores; humor; músicos e trovadores. Pelo microfone da Rádio Farroupilha se apresentaram nomes como Gildo de Freitas, Gaúcho da Fronteira, Berenice Azambuja, Albino Manique e Antoninho Duarte. 

Um programa de auditório, que traz um galpão para dentro da casa das pessoas, para a sala das casas onde está o receptor radiofônico.

LUIZ ARTUR FERRARETTO

Pesquisador de história do rádio e professor da UFRGS

A estreia da atração ocorreu às 21h do 1º de maio de 1955, transmitida diretamente do auditório da Rádio Farroupilha, no Centro Histórico de Porto Alegre. 

A Farroupilha integrava o grupo Diários e Emissoras Associados, de Assis Chateaubriand. O jornal do grupo, o Diário de Notícia naquele dia antecipava: “não se trata de um simples programa gauchesco, com alguns cantores e palavras regionais. Será uma revolução nesse gênero de audições”.

Na época, havia outros programas que valorizavam o gaúcho e abordavam a cultura regional. Contudo, o pioneirismo do Grande Rodeio estava em sair das paredes do estúdio e ir até um auditório. 

— A grande inovação é essa, é um programa de auditório, que traz um galpão para dentro da casa das pessoas, para a sala das casas onde está o receptor radiofônico — afirma Luiz Artur Ferraretto, pesquisador de história do rádio e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Convidado por Octávio Augusto Vampré para ancorar a transmissão, Paixão topou a empreitada, mas fez questão da companhia do amigo Darcy Fagundes, que já integrava o quadro de radioatores da emissora e tinha intimidade com os microfones.

Arquivo Pessoal/Arquivo Pessoal
Primogênito da família Fagundes, Darcy foi o principal apresentador nas décadas em que o programa foi ao ar.

Contribuição para a cultura

Existem poucos dados que permitem aferir o sucesso do programa em números. Uma pesquisa do Ibope de 1957, encomendada pela Rádio Nacional, encontrou que a Farroupilha tinha 38% da audiência na Capital.

— A Farroupilha era a emissora mais ouvida em Porto Alegre e o Grande Rodeio, uma de suas atrações de maior alcance — registra o professor. 

A jornalista Liliane Pappen, que pesquisou a contribuição do Grande Rodeio para o tradicionalismo, afirma que a principal foi disseminar as ideias defendidas pelo grupo de Paixão Côrtes. Sete anos antes, em 1948, o grupo fundou o primeiro Centro de Tradições Gaúchas (CTG), o 35. 

Para Liliane, iniciativas anteriores tentaram essa valorização do gaúcho, como o Partenon Literário e o Grêmio Gaúcho, de João Cezimbra Jacques, no século 19, ou o gauchismo literário de Simões Lopes Neto, no século 20, por exemplo. No entanto, essas elas não alcançaram grande apelo popular.

— Eles não vingaram (junto ao grande público), porque eram movimentos intelectuais, que exigiam leitura, e o analfabetismo era muito alto nessa época — afirma.

Nilda Jacks, professora da UFRGS e autora do livro Mídia Nativa: indústria cultural e a cultura regional, avalia que o rádio foi fator determinante na expansão do movimento tradicionalista. A professora investigou a relação entre os meios de comunicação de massa e a cultura regionalista no Estado. 

Na sua avaliação, o Grande Rodeio pautava e legitimava esses costumes e hábitos num importante meio de comunicação entre os gaúchos.

— O rádio foi fundamental, porque atingiu pessoas iletradas, rincões de áreas nunca dantes navegados. A rádio tem esse pertencimento local que gera esse vínculo tão forte com os ouvintes.

O nome e a voz do Grande Rodeio

Enquanto o Grande Rodeio difundiu o movimento tradicionalista em seu início, a voz cheia de interpretação de Darcy Fagundes foi a garantia de sucesso do programa. Apresentador, declamador, ator, ele é o primogênito de uma família que legou figuras como Nico, Bagre e Neto Fagundes. 

Nascido em 15 de dezembro de 1925, em Uruguaiana, veio para Porto Alegre aos 15 anos para estudar no Instituto Porto-Alegrense (IPA). Chegou a cursar Direito, mas foi o único dos irmãos homens a não concluir a graduação e se tornar advogado, o que era um desejo de seu pai Euclides.

Em 1952, já no final do curso, encantou-se pelo mundo das artes e da atuação, quando se juntou ao quadro de radioatores da Farroupilha.

Arquivo Pessoal/Arquivo Pessoal
Darcy Fagundes (D) foi um dos principais declamadores do Estado.

Para o sobrinho Neto Fagundes, atual apresentador do Galpão Crioulo na RBS TV, o legado de Darcy é uma moeda de duas faces. No plano familiar, ele foi precursor da verve artística dos irmãos e sobrinhos. Já no aspecto cultural, contribuiu para o impulsionamento do que hoje se conhece como música gaúcha.

O que eu faço hoje no Galpão Crioulo é o mesmo que o tio Darcy fazia.

NETO FAGUNDES

Apresentador do Galpão Crioulo

— A nossa música é muito nova, se a gente pensar. Não havia uma música nossa (antes dos anos 1950). Eu acho que ali a gente tem um polo, um início que gerou tudo isso que a gente tem hoje de regionalismo. O que eu faço hoje no Galpão Crioulo é o mesmo que o tio Darcy fazia — resume.

O apresentador destaca a declamação como o traço artístico onde o tio brilhava. Sua data de nascimento, inclusive, foi escolhida como o Dia Estadual do Declamador Gaúcho em 2019 pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (ALRS).

— Ele não era só um intérprete, era um rádioator. Como todos os artistas do rádio, a voz era só o que eles tinham e declamava como um ator — afirma o sobrinho.

Vida pessoal atribulada

Tamanho reconhecimento público foi sombreado por uma vida pessoal dura. Darcy teve cinco filhos e perdeu duas esposas. Na segunda vez em que ficou viúvo, a filha mais velha do casal, Luciane, tinha 8 anos e ela acumulou um papel grande na criação das duas irmãs menores. A filha conta que a morte da mãe foi o início de uma relação distante com a figura paterna:

— Eu era a filha mais velha em uma situação de orfandade. Isso me deixou revoltada e foi dificultado nossa relação, coisa que meus irmãos não têm — lembra a filha. 

Na adolescência, lembra, passou a rejeitar também o que o pai significava em termos de tradicionalismo.

— Hoje, eu reconheço o valor e a legitimidade (do tradicionalismo), mas na época isso era uma afronta para mim. Eu era paz e amor, revolução, abaixo à ditadura, abaixo à família.

Documentário repensa memória

Foi em busca por uma conciliação com a memória e a vontade de manter viva essa história, que Luciane se enfurnou em uma tarefa trabalhosa. 

Desde 2023, ela está produzindo o documentário Darcy Fagundes, meu famoso pai desconhecido em parceria com também jornalista e cineasta Atonio Czamanski.

Os dois são colegas de trabalho na ALRS e decidiram embarcar nesse projeto com forte carga sentimental, inclusive para Antonio. Filho de Ivo Czamanski, o cineasta conheceu Darcy ainda criança enquanto acompanhava o pai, que foi diretor de fotografia em filmes em que Darcy atuou, como A Morte Não Marca Tempo (1973).

— A gente fala que é um resgate histórico e afetivo. Decidimos apresentá-lo a partir do olhar da filha Luciane, que não conviveu o tempo todo com ele, mas que queria descobrir quem era o pai. Por isso o título — explica o diretor.

Foram 16 entrevistas com diferentes personagens que passaram pela vida de Darcy ou tiveram sua via impactada por ele. O lançamento do filme está previsto para este mês e a intenção da dupla é valorizar os centros de tradição na hora da distribuição do longa. Para Luciane, o trabalho mudou a forma com que encarava a herança da família.

— Eu passei a ter orgulho de pertencer a essa família e de ser filha dessa pessoa, que, enfim, é um ser humano. Eu passei a ver como um ser humano e não como um pai que faltou. Amadureci. É terapêutico também, de alguma forma.

*Produção: Guilherme Freling


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