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Porto Alegre

Lugar na fila de posto da Bom Jesus é vendido por até R$ 50

Moradores que não querem pagar para quem guarda a posição precisam madrugar em frente à Unidade de saúde

15/05/2019 - 06h13min

Atualizada em: 15/05/2019 - 08h46min


Ronaldo Bernardi / Agência RBS
“Guardiões do espaço” delimitam lugares com poltronas e colchões

Uma prática antiga tem deixado moradores do bairro Bom Jesus, em Porto Alegre, sem opção: ou eles compram lugar na fila ou correm o risco de ficar sem atendimento na Unidade de Saúde (US) do bairro. 

A situação já não é surpresa para quem busca pelo serviço. Alguns se sujeitam ao pagamento – que varia entre R$ 10 e R$ 50, segundo relatos – por necessidade, enquanto outros se negam a contribuir com o esquema, que é praticado, na sua maioria, por moradores de rua.

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– São sempre os mesmos que estão aqui, eles já chegam no dia anterior e ficam – conta uma moradora.

A US abre às 7h e grande parte das pessoas chega à unidade ainda antes das 5h. Mesmo assim, não há garantia de que conseguirão ficha, pois a fila já está, geralmente, tomada pelos “guardiões do espaço”. O esquema é organizado entre eles. Deitados em colchões, sentados em poltrona, passam a noite ao relento até a abertura da US. Em uma manhã, quando a reportagem chegou ao local, por volta das 5h15min, mais de 20 pessoas já estavam na fila, sendo que metade guardava vaga para terceiros. 

Grande parte dessas negociações ocorre ainda no dia anterior à abertura da unidade, outras, na hora. O Diário Gaúcho flagrou uma mulher pagando um homem que dormia na calçada e segurava o quarto lugar da fila para atendimento com clínico geral. Ele recebeu o pagamento, recolheu o colchão e foi embora. 

Algum tempo depois, um idoso, que havia comprado a vaga na noite anterior, com o mesmo homem, chegou à US perguntando pelo vendedor. Foi informado de que ele havia ido embora após repassar o espaço para outra pessoa. 

– Pois é, ele já deu golpe em vários – comentavam outros guardadores de fila.

Ronaldo Bernardi / Agência RBS
Guardador de carros foi flagrado comentando negociação de senhas

Esquema

Na manhã em que a reportagem esteve no local, um grupo segurava espaço para consulta com clínico geral, com cerca de 12 fichas, e outro para dentista, cerca de cinco fichas. 

Um guardador de carros fazia vigilância dos veículos, ao mesmo tempo que reservava lugar na fila. Outro homem, que segundo usuários mora nas proximidades, ajudava a organizar o esquema.

– Eu tô na incerteza. Porque o peão falou que ia vir aqui umas 5h, 5h30min, não me deixou documento nenhum. Se até as 7h ele não vir, eu vou berrar no portão dele. Igual, ele vai ter que me dar o dinheiro, porque eu não sou palhaço nem nada – argumentava o guardador de carros sobre um “cliente” que tinha reservado o lugar, mas não tinha entregue os documentos que garantiriam a consulta.

Brigas e bate-bocas são cenas comuns. A situação é tão grotesca que, para muitos, é motivo de graça.

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"Todo dia essa palhaçada"

Às 6h30min, meia hora antes de a unidade abrir, todos se levantam e começam a se organizar em filas por especialidade. O Diário Gaúcho acompanhou todo o processo. Às 7h, funcionários da US abriram os portões e entregaram as fichas. Os primeiros da fila garantiram o passe e foram para dentro do posto agendar as consultas. Em poucos minutos, já não havia mais vagas. 

– Faz um mês que venho aqui e só consegui ficha um dia, por sorte – disse uma moradora.

Um homem relata que a situação é conhecida dos servidores da UBS. Ele buscou atendimento três vezes e não conseguiu em nenhuma. 

– Eu não quis compactuar com aquilo e tive que ir atrás de uma consulta particular. Mas me indigna porque tem gente que não tem como pagar, enquanto as mesmas pessoas fazem daquilo ali um comércio – lamenta.

Há quem resista à prática e se negue a pagar pelo lugar. Outros não pagam por não terem condições financeiras. A reportagem questionou um “vendedor” sobre quanto cobrava para reservar o lugar na fila, e ele informou que eram R$ 20. 

– Isso está errado, todo dia essa palhaçada. Tem que madrugar ou pagar alguém, senão a gente não consegue nunca – reclamou uma mulher ao sair.

Quem não concorda com a negociata conta com a sorte e com o dia em que conseguirá, finalmente, uma consulta.

Guarda vai coibir ações

A Secretaria Municipal de Saúde (SMS) informou, por meio de nota, que “só tomou conhecimento do ocorrido nesta semana, quando foi informada pelos profissionais da Unidade de Saúde”. A SMS acionou a Guarda Municipal para que comece a ajustar as medidas que possam coibir este tipo de ação.

Atualmente, são ofertadas cerca de 25 consultas por dia na Unidade. A pessoa agenda sua consulta para o mesmo dia, um modelo que já não é adotado na grande maioria das unidades de saúde do município, onde pacientes são acolhidos a qualquer momento, sem fichas. As denúncias de venda de fichas podem ser realizadas via fone 156.   

Promotora de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos, Márcia Bento disse que já existe um inquérito envolvendo a US Bom Jesus em relação às deficiências estruturais e de recursos humanos, mas que ainda não havia informações sobre o comércio de vagas: 

– Essa fila não deveria nem existir. Isso tem que ser combatido e vamos investigar. É impedir ao público o acesso igualitário. Uma conduta imoral, com certeza.


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