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"Por amor"

Filho assume carrinho após uruguaio que vendeu churros por quase 50 anos na Capital morrer de covid-19

Comissário de bordo, Ricardo Hernandez aproveita suas férias para dar continuidade ao trabalho do pai e recebe o carinho dos clientes

27/05/2021 - 21h19min


Jéssica Rebeca Weber
Jéssica Rebeca Weber
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Jefferson Botega / Agencia RBS
Ricardo Jesus Hernandez aprendeu a fazer churros com o pai quando era criança

O carrinho do Churros del Uruguay voltou à esquina da Avenida Cristóvão Colombo com a Rua Doutor Timóteo, no bairro Floresta, em Porto Alegre, depois de dois meses. Mas não é Milton Hernandez Burci, 80 anos, que tem recebido os clientes com seu jeito gentil e alguma piada em portunhol — mantinha o sotaque mais de cinco décadas depois de vir de Montevidéu para a capital gaúcha. Quem faz o churros agora é o caçula dele, como uma forma de honrar a memória do pai, que faleceu em março de covid-19.

"Por amor", o comissário de bordo Ricardo Jesus Hernandez, 40 anos, está aproveitando as férias para dar continuidade ao trabalho de Milton. Recebe clientes comovidos, que querem provar mais uma vez a receita do uruguaio e relembrar histórias. Milton trabalhou por cerca de 40 anos na Redenção, além de levar a iguaria para a frente do Colégio Rosário e a praia de Tramandaí.

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Ele esteve uma década parado e, em razão da repercussão de uma reportagem sobre ele na ZH em 2015, construiu um carrinho novo no seu apartamento da Avenida Cristóvão Colombo e o levou para rua. Foi um sucesso: passou a vender uns 300 churros por dia e ganhou um propósito de novo.

— Eu rejuvenesci. Me sinto mais ativo — disse em uma segunda entrevista um Milton orgulhoso, estufando o peito por trás do uniforme branco de cozinheiro que tinha comprado para a nova fase da vida.

Também há quem ainda não sabe da morte do seu Milton, e daí Ricardo precisa dar a má notícia. A estudante Daniela Coutinho, 24 anos, e a mãe Eliane, 66, perguntaram logo “onde está aquele senhor querido”.

Bárbara Müller / Agência RBS
Milton ao inaugurar o carrinho novo, em 2016

— Ele já fazia parte deste lugar. É muito triste saber disso — lamenta Daniele.

O vendedor Almir Ricardo Novaes, 50 anos, que comprava churros ali há anos, também se surpreendeu com a notícia.

— Eu não conhecia a história deles, mas me chamava atenção que era uma daquelas pessoas que faz seu trabalho muito bem feito, dava para ver que não era um sacrifício para ele estar ali — diz.

Sacrifício para Milton era ficar em casa, o que gerou algumas brigas com a família. Os filhos insistiam para que ele se resguardasse durante a pandemia de covid-19, mas Milton quis seguir vendendo churros. A morte foi muito rápida. Ele começou com os sintomas de coronavírus no final de fevereiro, chegou a ser intubado na UTI do Hospital Divina Providência e morreu no dia 10 de março.

Ricardo segue cobrando o mesmo preço que Milton colocara há cinco anos no churros recheado com doce de leite, creme ou Nutella: R$ 3,00, ou dois por R$ 5,00 — a inflação não chegou na esquina da Cristóvão com a Doutor Timótio. Era um hobby para o pai, justifica, e segue não sendo um negócio por dinheiro. 

Faz parte do processo de luto do filho, que se emociona todos os dias. Especialmente na hora de preparar a massa. Esse momento lhe transporta para o passado, lembra do pai misturando os ingredientes enquanto fazia outras coisas — “era hiperativo”, segundo Ricardo. E gostava de cozinhar enquanto ouvia notícias do seu Grêmio pelo rádio.

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O carrinho que Ricardo usa é o que foi projetado, soldado e construído por Milton há cinco anos. A receita do churros, aprendeu com o pai também — e um dos segredos está em fazer a massa mais fininha, o que deixa o doce mais crocante e sequinho e dá lugar a mais recheio. 

Jefferson Botega / Agencia RBS
Milton à esquerda junto com amigos, quando vendia churros na Redenção

Ele pretende atender de segunda a sábado, das 13h30m às 17h30min, até 8 de junho, quando acabam suas férias. Depois, deve tirar o carrinho do depósito nos dias de folga — vai divulgar quando na página do Facebook

Ricardo só lamenta que não pode abraçar os clientes, em razão da pandemia. E não deixa a repórter ir embora sem ver um desenho que uma freguesa lhe deu, do pai empurrando seu carrinho de churros sobre nuvens e a inscrição “o céu ficou mais doce”.

O corpo de Milton foi cremado. Ricardo quer seguir a vontade do pai e espalhar suas cinzas na Arena do Grêmio.


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