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"Do Lixo ao Bixo"

Catador conta, em livro, sua história de superação até ingressar na universidade

Voz da categoria no Brasil, Alexandro Cardoso já participou de encontros com o Papa e com a Fundação Bill Gates

31/07/2021 - 09h00min


Aline Custódio
Aline Custódio
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Felix Zucco / Agencia RBS
"Do Lixo a Bixo: A Cultura dos Estudos e o Tripé de Sustentação da Vida" conta a história de superação e resiliência de Alex

Filho de pais e avó catadores, criado desde os primeiros meses de vida em meio à catação de materiais recicláveis na Vila Cai Cai, em Porto Alegre, Alexandro Cardoso, 41 anos, se tornou a voz da categoria no Brasil. No mês passado, ele lançou o livro Do Lixo a Bixo: A Cultura dos Estudos e o Tripé de Sustentação da Vida, pela editora Dialética, que conta a própria história de superação e resiliência.

Um dos fundadores do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), Alex, como é mais conhecido, parou de estudar na 5ª série. Com o desejo de voltar à escola, palestrou em mais de 10 universidades brasileiras e esteve em pelo menos 10 países para falar sobre o trabalho dos catadores. Em 2015, decidiu se tornar estudante mais uma vez. E nunca mais parou.

Depois de completar o Ensino Fundamental e o Médio na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA), ele fez curso pré-vestibular popular e ingressou na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 2018. Além do livro que acaba de lançar, tem textos publicados em oito obras de outros autores, alguns artigos acadêmicos e vários textos em sites e redes sociais.

Prestes a concluir o curso de Ciências Sociais, Cardoso pretende seguir estudando, pesquisando sobre o tema que conhece desde a infância nas vielas da Vila Cai Cai e atuando no meio onde cresceu.

Pai de quatro filhos – Alexsandra, 24 anos; Helen, 22 anos; Victor e Vinícius, 17 anos – e avô de Raíssa, um ano e meio, e Sofia, quatro anos, ele tem uma meta: ajudar a ampliar os horizontes daqueles que trabalham como catadores.

— Tudo o que eu faço é com energia e confiando, mesmo que venha o tombo. Na prática, é pior não lutar e não tentar. O tombo é passageiro. Na próxima vez, eu ganho — resume.

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Os pais catadores

Meu pai foi montador de máquina agrícola, em Passo Fundo. Quando perdeu o emprego, em 1977, decidiu se mudar para Porto Alegre porque pensava que seria bem acolhido na Capital. Acabou se tornando um dos primeiros a iniciar a ocupação do que viria a ser a Vila Cai Cai, na Zona Sul. Minha mãe veio no ano seguinte. O meu pai conviveu muito com o racismo. Para ele, isso era "não ser bem acolhido". Ele pensou que chegando aqui (em Porto Alegre), iria trazer algo que fosse bom, mas teve o pior que esta cidade tinha: viraram as costas para ele. Mas ele não demonstrava isso para a família. Ele era duro, mas carinhoso. Foi uma figura muito importante na minha formação enquanto homem.

A caixa de papelão

Em 1980, quando eu tinha dois meses de vida, a minha mãe passou a me levar junto no carrinho para a catação na madrugada. Certo dia, de manhã cedo, quando os meus pais voltavam para casa com o carro cheio, deixaram cair uma caixa de papelão. Eles se distanciaram, mas a minha mãe decidiu voltar para buscá-la. Foi quando viu que eu estava dentro daquela caixa.

Infância

A minha infância, minhas brincadeiras e todo o meu processo foi no meio da reciclagem. Eu brincava de separar material e de varrer o pátio. Os meus pais me ensinaram dentro daquele processo, mas não deixei de ser criança. Tive uma infância muito rica, com a minha família e amigos. Por mais sofrida que ela fosse, eu não conseguia enxergar este sofrimento. Passei muita fome, de não ter o que comer, mas eu não tive falta de pais, de carinho e de amor. Eu fui criança.

Tudo o que eu faço é com energia e confiando, mesmo que venha o tombo. Na prática, é pior não lutar e não tentar. O tombo é passageiro. Na próxima vez, eu ganho.

ALEXANDRO CARDOSO

Aos 41 anos, está prestes a concluir o curso de Ciências Sociais

Estudos

Nos anos 1980, a Vila Cai Cai não tinha luz, água e banheiro. Só havia pobreza e barracos sem cor. As coisas coloridas da vila eram o lixo da cidade. As casas eram feitas de papelão ou de compensado. Não precisava chutar a porta porque ela caía. A escola mais próxima ficava do outro lado da Avenida Beira-Rio. A mãe, então, me mandou para a casa da minha avó para eu estudar, em Passo Fundo. Hoje, reconheço como um gesto carinhoso, mas na época não conseguia entender porque eu precisava ficar longe da mãe e do pai (Alex chora nesta parte da entrevista) porque a melhor coisa que tem é ficar perto. Fui entender depois de adulto, conversando com a mãe.

Transformações

A catação, hoje, ainda enfrenta a exclusão. Mas, antigamente, era pior porque era criminalizada. Quem trabalhava com catação era o primeiro a ser apontado como criminoso. Estas transformações foram me moldando. Tem sido uma vida pulsante, de muito sofrimento e muita pobreza, mas não uma vida pobre. Minha vida é rica em lutas e conquistas. A cada pequena conquista há uma grande comemoração porque dou valor a cada pequeno passo.

Felix Zucco / Agencia RBS
Alexandro Cardoso, 41 anos, é um dos fundadores do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis

Mergulho

Ao escrever este livro, mergulhei no passado e precisei reaprender a conversar com a minha própria mãe para entender coisas que não foram ditas pelos meus pais na época, que não podiam ser ditas para preservar os filhos. Comecei a entender a importância de ficar perto, de conversar e de compreender a conversa. De ter um fio condutor. De entender coisas passadas.

Família

Entre os sete e os 14 anos, fiquei entre Passo Fundo e Porto Alegre para estudar. Eu e minhas duas irmãs voltávamos para os meus pais nas férias e nos grandes períodos de greves da escola pública. Ajudávamos os pais na catação. Eram até 14 horas de trabalho diário. Por isso, não tinha como separar o trabalho do resto da vida. Ficávamos juntos o tempo inteiro.

Passei muita fome, de não ter o que comer, mas eu não tive falta de pais, de carinho e de amor. Eu fui criança.

ALEXANDRO CARDOSO

Catador, escritor e estudante universitário

Sinaleira

Com 10 anos, tenho a memória de ir pela primeira vez para a sinaleira para pedir esmolas. Levei as minhas duas irmãs. Na época, uma tinha seis e a outra, oito anos. No Natal, ganhávamos muito dinheiro. Era um trabalho para completar a renda. Num único período de 40 dias, juntamos o suficiente para construir uma casa em Passo Fundo. A sinaleira, claro, que era uma situação ruim. Mas a fome era muito pior. Não dá para julgar. Tem que se deslocar para a vida do outro para entender o que ele passa.

Política

Quando me perguntam se eu sou a favor da esmola na sinaleira, é óbvio que respondo que não. Mas é preciso discutir uma série de questões. Na política é preciso ter pessoas que consigam compreender o processo humano, de sentir a fome e de saber o que é o frio. Tem que combater a fome e tudo o que ela vai reverberar. Para combater o tráfico de drogas, é preciso coibir a violência. E para combatê-la, é preciso acabar com a exclusão social. E para isso, é preciso mudar o processo de educação. Tem uma série de questões que são transversais. Não dá para aceitar alguém que sempre teve dinheiro se torne político e crie, a partir do ponto de vista da vida dele, uma lei que vá oprimir a maioria.

Solidariedade

A Vila Cai Cai se formou entre o dique e o Guaíba. Quando chovia, a água subia, não invadia a cidade, mas levava as nossas casas embora. Muitas vezes, ficamos abrigados na Cecopam (Centro da Comunidade Parque Madepinho) e no Cecores (Centro de Comunidade da Vila Restinga) para passar estes períodos. Por isso, costumo dizer que a minha vida foi marcada pela solidariedade. Por mais que a cidade tenha virado as costas, havia pessoas que não viravam. Sempre teve ajuda para sobrevivermos e nós agradecíamos trabalhando. Era quase uma troca. Recebemos, mas também demos.

Adulto precoce

Com 14 anos, estava na quinta série e parei de estudar para me dedicar só ao trabalho. Na situação do catador, a juventude é quase sequestrada. Se o nosso brinquedo era um trabalho e a nossa juventude foi trabalhar, há um processo de ruptura. Não tem um meio de ligação para dar o salto da criança para o adulto. Trabalhamos, começamos a ganhar dinheiro e a discutir para onde ele vai. O processo de adultização é precoce. Na vila é considerado um valor começar a trabalhar cedo e ter filhos cedo. Quando eu estava com 15 anos, minha namorada engravidou. Fui pai aos 16 anos.

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O começo

Entre os 16 e 18 anos, morei com a minha mulher e a minha filha nas casas de parentes no Interior. Em 1998, decidi voltar de vez para o Loteamento Cavalhada, para onde foram realocados os moradores da antiga Cai Cai, em Porto Alegre. Me estabeleci como catador e entrei para a Associação de Catadores do bairro Cavalhada. Como eu era muito comunicativo, passei a fazer parte da coordenação da entidade. Me tornei conselheiro e delegado do Orçamento Participativo. Eu, com 18 anos, era o único jovem no meio do povo. Foi quando ajudei a criar a Federação dos Recicladores e fiquei com o cargo de secretário.

O despertar da liderança

No ano 2000, no cargo de secretário, passei a participar de várias reuniões. Muitas vezes, eu pouco entendia sobre o que estavam falando. Mas havia coisas que eram do meu trabalho, e eu respondia. Certa vez, fui convidado para palestrar na Amrigs (Associação Médica do RS). Me deram um monte de papel para ler na mesa de debate, ao lado do então diretor do DMLU (Departamento Municipal de Limpeza Urbana). Eu olhava o diretor usando uma gravata, falando muito bem e ficava pensando se um dia eu poderia ser assim como ele. Quando subi ao palco e vi o auditório lotado, bateu um medo e gaguejei. Não consegui ler nada, nem me apresentar. Pedi desculpas e comecei a falar da minha realidade. Me dei conta que todos estavam prestando atenção no que eu falava. Na minha imaginação, aquilo me mostrou que não precisava ser doutor para falar o que só eu conhecia da minha realidade. Era exatamente o que as pessoas queriam ouvir porque não conheciam. Eu gostei muito daquilo.

Brasília

Em 2001, fomos em quatro ônibus para Brasília num encontro nacional com 1,7 mil catadores de todo o Brasil. Foi a melhor viagem da minha vida. Fui com muitos sonhos na bagagem. Acabei me tornando o coordenador nacional do Movimento Nacional dos Catadores e Recicladores (MNCR). Trabalhava de dia na cooperativa e à noite participava de reuniões para organizar o movimento.

Me dei conta que todos estavam prestando atenção no que eu falava. Aquilo me mostrou que não precisava ser doutor para falar o que só eu conhecia da minha realidade.

ALEXANDRO CARDOSO

Sobre uma palestra na Amrigs

Valorização

Uma pessoa que vive no sistema de exclusão completa é porque ela foi negada o tempo todo, alguém estava dizendo não, e isso a levou a cair cada vez mais. E como que a gente reconstitui a identidade dela? Primeiro, como ser humano. Depois, mostrando como ela é importante para os outros seres humanos. O advogado quer ser advogado porque cria um brilho. Um jogador de futebol quer jogar para a torcida, estar na Seleção.

Uruguai

Em 2003, fiz minha primeira viagem internacional. Fui ao Uruguai conversar com os catadores. Me esforcei muito para aprender espanhol. Aprendi a língua falando direto com eles.

Primeiro passaporte

Em 2008, fiz meu primeiro passaporte para ir à França. Fui recebido por Danielle Mitterrand (ex-primeira-dama do país), que presidia a fundação France Libertés - Fondation Danielle-Mitterrand. Não sabia falar nada em francês, e ela não falava em português. Mas conseguimos nos comunicar. No ano seguinte, voltei à França e ela convidou os representantes do Movimento para irem à casa dela. Ela abriu a própria casa para os catadores. Algo fantástico!

Experiências internacionais

O trabalho na catação e na militância social me levou a palestrar em diversas universidades, inclusive no Exterior. No Rio Grande do Sul, estive na UFRGS, na PUC-RS, na Universidade de Passo Fundo, na Universidade Federal de Pelotas e em muitas outras no Brasil. Além do Uruguai e da França, viajei para a Argentina, onde conheci a Universidade Nacional de Lujan, fui a São Francisco (EUA) para falar sobre a questão do clima na Universidade da Califórnia, também estive na Índia, na África do Sul e na Holanda. Falei na Organização das Nações Unidas (ONU) e na Organização Internacional do Trabalho (OIT) em Genebra, na Suíça. Num momento estava na catação lá na vila e no outro estava falando para doutores. Agora, sou convidado para dar aula de forma online em várias universidades, como fiz no final do ano passado para uma universidade alemã.

Encontro com o Papa Francisco

Em 2015, fui convidado pelo Vaticano para conhecer o Papa Francisco em sua passagem por Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. Foi uma surpresa. Até hoje eu guardo a garrafa do encontro com o Papa Francisco.

Fundação Bill Gates

Em 2005, fui convidado para uma reunião com a equipe da Fundação Bill Gates, que estava fazendo o mapeamento dos catadores da América Latina. Era um hotel superluxuoso. A diária que recebíamos valia dois salários mínimos. Estávamos eu e um camarada catador de Minas Gerais. Fiquei encantado com o hotel e com tudo o que tinha para comer. Fiz uma montanha no meu prato. À noite, pensei: "Como eu vou ficar neste lugar e a minha família lá na merda?". Meus filhos menores tinham dois anos e meio e eu estava numa dificuldade financeira terrível. No dia seguinte, a equipe do Bill Gates percebeu a nossa tristeza e perguntou o que havia ocorrido. Pedimos para ficar num hotel simples e levar o dinheiro da diária para casa porque estávamos vivendo um conto de fadas e nossos filhos, não. A partir dali, começamos a cobrar diária para determinadas reuniões e palestras. Com estes recursos, não precisávamos mais receber na cooperativa.

Felix Zucco / Agencia RBS
Em 2005, Alex foi convidado para uma reunião com a equipe da Fundação Bill Gates, que estava fazendo o mapeamento dos catadores da América Latina

Profissão: catador

Em 2001, teve um debate sobre o nome da profissão. E entendemos que o reciclador é o empresário que recicla. Catador de materiais recicláveis é todo o restante do trabalho. No ano seguinte, conquistamos o reconhecimento da profissão de catador na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Colocamos que o motorista, o prenseiro e o administrativo da cooperativa também são catadores. A cooperativa é um conjunto de trabalho e a catação é um processo organizado. Tem gente que faz a coleta, outros que separam e há quem faça a limpeza e aqueles da parte administrativa. Mas todos são catadores. Eu sou catador ainda.

A volta aos estudos

Sempre quis estudar. Passava na frente da escola e os portões abertos, me pedindo para eu voltar. Mas eu inventava uma desculpa, era família, trabalho ou qualquer outra coisa. Na cooperativa, achava muitos livros e sempre os recolhia e lia em casa. Estava sempre em processo de estudo. Em 2015, da esquina da minha casa vi a escola Neusa Goulart Brizola e decidi ir até lá. Pedi ajuda à diretora porque queria estudar. Ela disse que eu deveria começar naquele dia e os documentos poderiam ser enviados depois. Comecei no quinto ano na escola Neuza Goulart Brizola e só saí de lá quando concluí o ensino fundamental na Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Bixo na UFRGS

Entre 2016 e 2017, fiz o Ensino Médio no Colégio Estadual Cônego Paulo de Nadal, já com a vontade de chegar à UFRGS. Conheci o curso popular Emancipa e pude ter aulas de redação. Foi um período complicado porque eu trabalhava de dia, estudava à noite e ainda tinha que ajudar na articulação do MNCR. Em 19 de janeiro de 2018, eu estava em Palmas (TO), em reunião numa cooperativa, e comecei a receber mais de 100 mensagens no celular. Uma delas era uma foto com o meu nome no listão da UFRGS. Eu havia me tornado bixo em Ciências Sociais.

Felix Zucco / Agencia RBS
"Escolhi o curso (Ciências Sociais) por esta questão de compreender a sociedade", diz Alex

Ciências Sociais

Escolhi o curso por esta questão de compreender a sociedade, como se dá a organização das instituições, a construção política, as questões legais, como se consegue viver sem dinheiro dentro de uma sociedade capitalista. Estas questões foram me acordando. Eu sempre fui, na verdade, cientista social. Estou no último ano, me preparando para o trabalho de conclusão. Já penso no mestrado e no doutorado, inclusive no Exterior, porque já há esta possibilidade. Quero continuar na pesquisa.

Livro

Enquanto o mundo estava parado por conta da pandemia de coronavírus, eu estava agindo. Decidi escrever o livro. Ele fala sobre a minha história e que é possível voltar a estudar, não importando o espaço onde estamos. Como a gente consegue recolher os saberes e fazer com que eles sejam distribuídos para que todos aprendam.

O futuro

A minha vida sempre foi uma luta para ter algo melhor. Tive uma vida inteira de faltas. E este melhor não é para mim, é para nós. Porque começando a olhar para esta minha realidade, ela foi construída. Então, ela pode ser destruída, reformulada e reorganizada de outra forma. E é por isso que eu luto com o que tenho e com o que ainda vou buscar para mudar a vida de pessoas iguais a mim não só pela relação de pobreza, mas pela ignorância da vida. Então, minha vida agora é pelo conhecimento, para mudar as pessoas e para que estas pessoas mudem o mundo. É a minha maior vontade.


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