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Batendo o pé 

Paciente com covid-19 que viralizou em vídeo ao som de Beatles se recupera em casa após quatro meses de internação

André Miranda da Silva, 40 anos, teve alta do CTI do Hospital de Clínicas de Porto Alegre depois de enfrentar forma gravíssima da infecção por coronavírus 

03/08/2021 - 19h33min


Larissa Roso
Larissa Roso
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Mateus Bruxel / Agencia RBS
André, ao lado da esposa, Daisy, e da filha, Andriely, com o pôster dos Beatles que ganhou durante a internação no Clínicas

Bastaram 12 segundos de vídeo mostrando um pé que “dançava” sob um cobertor azul ao som de Twist and Shout, dos Beatles, para emocionar e surpreender as redes sociais. A imagem do paciente com covid-19 gravíssima, entubado e cercado de equipamentos em um leito do Centro de Tratamento Intensivo (CTI) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), simbolizava a vida — e viralizou.   

Depois de 119 dias de internação em duas instituições, o açougueiro André Miranda da Silva, 40 anos, recebeu alta do HCPA na semana passada para dar seguimento à recuperação em casa, em Canoas, na Região Metropolitana, ao lado da filha e da esposa — Daisy Holstein Miranda da Silva, 45, chegou a se despedir do marido por chamada de vídeo em um dos momentos mais dramáticos da doença.  

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A unidade 7C do CTI do HCPA costuma disponibilizar rádios para que os pacientes se distraiam com música ou noticiário — a prática virou uma espécie de ritual de sorte entre as equipes assistenciais, na torcida pela recuperação dos infectados pelo coronavírus. Em uma noite de maio, a enfermeira Nivea Shayane Costa Vargas se esforçava para entender o que André queria dizer. Com traqueostomia (incisão feita no pescoço, na altura da traqueia, para permitir a colocação de uma cânula para conectar ao respirador), ele não conseguia falar.  

— Está com calor? — questionou Nivea ao ver a movimentação dos pés. 

A enfermeira pediu ajuda à colega Rani Simões Resende. 

— Quer dançar? — perguntou Rani, recebendo resposta afirmativa e procurando uma trilha mais animada no celular. — Gosta de Beatles?  

E então André se empolgou ainda mais, dançando como podia, enquanto Nivea correu para gravar a cena. Dali, a sequência ganhou a internet. No Diário do Front, projeto de GZH, Rádio Gaúcha e Zero Hora que relatou a rotina de profissionais da linha de frente do combate à pandemia, a história foi contada pela enfermeira intensivista Isis Marques Severo. O episódio comoveu o público, e uma pessoa levou presentes para André na recepção do hospital — um pôster e CDs da banda britânica.  

A médica intensivista Patrícia Schwarz explica que André desenvolveu covid-19 severa, com comprometimento quase total dos pulmões. Transferido do Hospital Universitário de Canoas, em uma viagem de cerca de 20 quilômetros que exigiu três horas para o deslocamento da ambulância, dado o estado delicado do paciente, André logo precisou ser submetido à oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO, na sigla em inglês), conhecida como pulmão artificial. Trata-se de um sistema que retira o sangue do corpo — enriquecendo-o com oxigênio e removendo o gás carbônico — e o manda de volta para o organismo. O procedimento é caro e complexo, exige alta capacitação para operá-lo e não é custeado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), dependendo de verbas de pesquisa ou doações. 

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André teve complicações, mas a estabilidade dos outros órgãos permitiu a retirada gradual dos sedativos e o início da reabilitação, com exercícios de força. Cogitou-se um transplante pulmonar, possibilidade que o deixou assustado e cabisbaixo por alguns dias. A melhora foi gradual, lenta, mas o intenso desejo de retornar para casa ajudou a viabilizar os avanços.  

Mateus Bruxel / Agencia RBS
André com a família e as mensagens de agradecimento, em especial à equipe assistencial do Hospital de Clínicas de Porto Alegre

— A partir do primeiro dia em que ele se sentou no leito, parece que virou a chave. No início, eram até oito pessoas ao redor para garantir a segurança ao ficar de pé. Ele era muito, muito colaborativo. A tranquilidade, a positividade dele foram muito importantes. A equipe estava muito engajada. Todos queriam ficar com o André. Foi um período bem difícil na UTI, em que vários pacientes não sobreviveram. Era uma esperança vê-lo ali — recorda Patrícia, coordenadora do Programa de ECMO Adulto do HCPA.  

Nos quatro meses em que esteve afastado da família e dos amigos, o açougueiro recebia até 20 mensagens de áudio e vídeo por dia — Andriely, cinco anos, pedia que o papai voltasse logo. Formou-se uma corrente ininterrupta de orações. Daisy se mudou para a casa dos pais com a filha. Sem condições emocionais de trabalhar, sempre aflita à espera dos telefonemas do hospital, perdeu o emprego em uma assessoria de cobrança e teve de tirar a menina da escola particular.  

— Foi um milagre — crê Daisy, passado o pior.  

Ao ter alta do CTI, André, protegido do frio por um cobertor do Grêmio, recebeu uma homenagem dos cuidadores, que seguravam balões dourados e azuis e entoaram a letra de sua música preferida, ensaiada com antecedência e tocada ao violão. “Hoje o meu milagre vai chegar / Eu vou crer, não vou duvidar / O preço que foi pago, ali na cruz / Me dá vitória, nesta hora”, diz uma estrofe de Milagre, de André Valadão.  

— A palavra é gratidão, né? Uma vitória. Tudo o que aconteceu ali... Aquela emoção toda, todo mundo que me ajudou, os médicos, os enfermeiros, os técnicos. Passou um filme na cabeça — lembra o paciente. 

Durante a entrevista a GZH, Daisy fez questão de salientar que a canção também embalou a época em que André, contrabaixista fã de gospel, queria começar o namoro. 

— Naquela época, o milagre era eu — diverte-se a companheira de 10 anos de relacionamento.  

Em casa desde 26 de julho, quando foi recepcionado com festa e por um grupo vestindo camisetas com sua foto, André utiliza um cilindro de oxigênio com óculos nasal. Orgulha-se por ter saído da ambulância caminhando. Passará por sessões de fisioterapia motora e respiratória e tem consultas de revisão agendadas para setembro. Já consegue abrir garrafas de água e refrigerante sem auxílio, o que considera uma grande conquista. Sente saudade do emprego e do contato com os clientes do mercado, a quem sugere receitas com diversos cortes de carne: vazio recheado, picanha no sal, carne de panela com aipim, frango recheado com queijo e presunto. Reflete sobre o que enfrentou: 

— Às vezes, passamos tanto tempo correndo, trabalhando, pensando nas atividades e esquecemos um pouco do amor da família, do lar. Isso tudo fez com que eu pensasse agora. Temos que ter o amor da família, estar conectados com Deus. É isso que vamos levar, nada mais. Tudo o que guardamos, tudo o que compramos, tudo o que nos preparamos para ter, nada é mais importante do que a família, o amor que temos pelas pessoas e o amor que fazemos que as pessoas tenham por nós. 



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