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Demora no pagamento, estranhamento e boa avaliação pelas empresas marcam o primeiro mês de ônibus sem cobrador em Porto Alegre

Até agora, 27 linhas estão circulando nessas condições; novas rotas devem ser incluídas em abril

18/03/2022 - 21h23min


Guilherme Milman
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Jefferson Botega / Agencia RBS
Recebimento de dinheiro sem troco é a principal dificuldade relatada por motoristas

Um mês ainda é pouco tempo para que o motorista Fernando Santos se acostume totalmente com o fato de estar sozinho com os passageiros do 255 Caldre Fião, uma das 27 linhas de ônibus Porto Alegre que já tiveram a função de cobrador retirada ao longo dos últimos 30 dias. O ônibus, que pertence ao consórcio Via Leste, liga o centro da Capital a bairros da Zona Leste, como Santo Antônio e Partenon.

Embora relate não ter enfrentado nenhum problema grave desde o início da mudança, Fernando admite o estranhamento em voltar a realizar funções que não fazia há mais de 25 anos, quando deixou de ser cobrador para trabalhar como motorista.

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— A gente sente como se fossemos nós e o mundo. É tudo contigo: dirigir, cobrar, ajudar cadeirantes a subir, mas, até agora, estou conseguindo me adaptar — conta.

Ao partir dos terminais Uruguai, no sentido Centro-bairro, e 12 de Outubro, na direção oposta, começa a receber os primeiros passageiros. Muitos apresentam o cartão TRI, que libera a catraca automaticamente ao ser aproximado do leitor, e não exige demandas do condutor. Entretanto, parte significativa de quem embarca ainda apresenta dinheiro para pagar a passagem. Atrás do leitor, um bilhete pedindo trocado reflete o principal desafio notado por Fernando.

—  A maior dificuldade é o troco. As pessoas não ajudam com moeda, são poucos que ajudam. Recebo muita nota inteira e tenho que ficar juntando trocado. Isso atrasa, mas, felizmente, a maioria está sendo compreensiva — conta. 

O pagamento, quando em dinheiro, é entregue ao motorista, que depois aciona um botão que libera a entrada do passageiro. A reportagem circulou pela linha durante a manhã de terça-feira (15) e constatou que quem possui o TRI consegue entrar em cerca de 10 segundos. Quem paga com moedas leva aproximadamente 25 segundos. Já quem chega com notas maiores pode demorar mais de 40 segundos para acessar o veículo.

O esquema acaba por gerar, em alguns momentos, aglomerações durante o embarque. Para Virgínia Paladino, o consequente atraso é o principal problema causado pela ausência dos cobradores.

— Como tem cada vez menos ônibus circulando, fica lotado, atrasa mais e a gente não consegue chegar no horário no trabalho. Desde o primeiro dia (sem cobrador) tem atrasado uns 10, 15 minutos — reclama.

Saura Nunes tem opinião parecida. Sua queixa vem em razão do longo tempo que fica em pé aguardando para poder passar pela catraca, embora reconheça o trabalho ágil do motorista:

— O que acontece é que a gente entra e fica muito tempo na frente para poder pagar o motorista, porque o atrapalha também. Acho bom ter o cobrador ou outro esquema porque, assim, as pessoas ficam amontoadas na frente. Por mais rápido que seja o motorista, não adianta.

Embora muitas pessoas já estejam se acostumando com a ausência do profissional sentado ao lado da catraca, para outras ainda se trata de uma experiência inédita. A estudante Luísa Bay não utilizava o transporte público desde o começo da pandemia e voltou nesta semana. Pela primeira vez, precisou entregar dinheiro direto ao motorista e levou mais tempo que o normal para ser liberada.

— Além de ficar ruim para a gente, pode atrapalhar o motorista, pois ele tem que se concentrar no trânsito e também dar troco. Achei meio complicado — afirma.
Por mais que o movimento no Caldre Fião seja significativo nos horários de pico, ele é classificado pelas empresas como de baixa circulação, critério utilizado pela prefeitura de Porto Alegre para designar os primeiros ônibus a aderirem ao projeto de extinção gradual dos cobradores. 

Jefferson Botega / Agencia RBS
Estudante Luísa Bay voltou a andar de ônibus após dois anos e passou pela experiência de pagar ao motorista pela primeira vez

Outras linhas que fazem parte desse grupo, como o Circular 1 (C1), registram uma demanda ainda menor. O ônibus pertencente à Carris tem sua rota limitada ao Centro Histórico, o que explica o fato de estar quase sempre vazio. O trajeto também foi percorrido pela reportagem. Das poucas pessoas que o utilizam no início da manhã, a imensa maioria é portadora do cartão TRI e, por isso, elas não notam grandes diferenças em seu trajeto. Para Ivete Alves, com o uso do cartão, o modelo funciona normalmente.

— Em vários lugares da Europa funciona, aqui tem que funcionar também. Por enquanto, está muito bom, mas todo mundo tem que ter o TRI para funcionar — argumenta.
Quem opta pelo C1 costuma frequentá-lo diariamente e, por isso, mesmo que não enfrente intercorrências, a ausência do profissional que fazia a cobrança é sentida. Cláudia Andrade sempre senta próximo à entrada e conta que conversava seguidamente com a antiga cobradora.

— É uma linha tranquila. A falta que sinto da cobradora é no âmbito pessoal, eu fiz amizade com ela — conta. 

Impacto menor que o previsto

Enquanto passageiros de diferentes linhas divergem sobre o novo modelo, as entidades são unânimes ao avaliar positivamente o início da primeira etapa do projeto. O diretor-técnico da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) Flávio Caldasso afirma que o impacto da mudança foi, inicialmente, menor que o previsto pela prefeitura:

— O projeto está saindo melhor que o esperado. A gente escolheu linhas que teriam um menor número de pagantes, e esse número vem caindo. A operação vem sendo ajustada, e, por enquanto, está muito tranquilo. 

Caldasso admite, no entanto, que, principalmente no início da circulação sem cobrador, motoristas enfrentaram dificuldades em lidar com o troco. Segundo ele, o ideal seria eliminar o pagamento em dinheiro e manter apenas o acesso pelo cartão TRI. Para isso, existe uma mobilização para incentivar a população a aderir ao cartão. Segundo a Associação dos Transportadores de Passageiros (ATP), há um plano de diminuir o número de pessoas que pagam em dinheiro, que hoje é de 20%, para 12% a 9% em até dois anos.

— Como, por lei, não podemos eliminar a circulação de moedas, a grande sacada é seguir fazendo campanhas e facilitar o acesso das pessoas na aquisição desses cartões — afirma o diretor.

Autoridades concordam que o principal desafio está em garantir maior agilidade no embarque dos usuários. Para que relatos como os dos usuários do Caldre Fião não se repitam em linhas de maior circulação, as empresas de ônibus da Capital têm trabalhado para desenvolver sistemas que facilitem o processo. O engenheiro de transportes da ATP Antônio Augusto Lovatto afirma que o órgão está criando ao menos três alternativas a serem disponibilizadas ainda neste ano. A primeira delas é a distribuição, aos motoristas, de uma máquina que gera bilhetes com QR Code. 

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O objetivo é que, em vez de pressionar o botão, o condutor entregue o papel com o código quando receber o dinheiro. O passageiro poderá aproximá-lo do leitor para liberar a entrada. A expectativa é que a fase de testes ocorra ainda em março, para começar a implementação em abril.

Lovatto explica que em até três meses será possível gerar o QR Code antes das viagens por meio de um aplicativo, o que evitaria a demora na entrega das cédulas ao motorista. Até o final do ano, as empresas ainda esperam disponibilizar o pagamento por Pix.

— Implementando essas tecnologias, com certeza o cronograma vai ganhar uma nova velocidade a partir das próximas semanas e dos próximos meses — explica.

Empresas afirmam que garantem empregabilidade

Até o momento, segundo a ATP e a prefeitura de Porto Alegre, dos 54 cobradores retirados de suas linhas originais, nenhum foi demitido. A lei assegura que as demissões só ocorram por justa causa. Conforme Lovatto, a maioria deles está sendo recolocada para outras funções nas empresas, como fiscalização, manutenção, eletricista, auxiliar de mecânico, administrativas, ou ainda estão na reserva para atuar como cobrador em outras frotas. 

Há casos, também, em que os profissionais aproveitaram a retirada para tirar férias ou se aposentar. O engenheiro salienta que, com a expectativa de aumento de passageiros em 2022, levado pela retomada das atividades e melhora no cenário da pandemia, será possível reaproveitar os profissionais:

— Se por acaso conseguirmos voltar a ter 80% do movimento registrado antes da pandemia, por exemplo, teremos que contar com um efetivo de 800 motoristas e 600 cobradores a mais do que temos hoje. Por isso, não pretendemos demitir ninguém neste momento, e vamos fazer o máximo para que isso não ocorra.

Além das realocações internas, a ATP está trabalhando em conjunto com o sistema Sest-Senat, que oferece cursos profissionalizantes para cobradores. Um dos projetos, em vigor desde 2019, busca formar novos motoristas. Até agora, 200 trabalhadores já ingressaram no curso.

Com o fim da função a longo prazo, novas oficinas estão sendo oferecidas nas áreas de transporte, negócios e qualificação de vida. O objetivo, segundo o diretor da unidade Sest-Senat em Porto Alegre, Pedro Fabrin, é que o cobrador treine para seguir no segmento de transportes ou fazer uma qualificação em outra área. Segundo ele, apenas 20 profissionais já demonstraram interesse, uma adesão considerada baixa.

— Estamos buscando incentivar os cobradores e entender os seus interesses, para que eles possam se adiantar e começar o quanto antes o processo de requalificação no mercado de trabalho — explica o diretor.

Jefferson Botega / Agencia RBS
Motorista Fernando Santos conduz a linha Caldre Fião 255 e diz estar se adaptando ao processo

Um cobrador, que preferiu não se identificar, trabalhava em uma das linhas que tiveram a função extinta. Ele conta que, logo quando foi informado da mudança, já foi realocado para uma outra linha da empresa, que possui uma demanda muito superior, chegando a levar o dobro de passageiros no horário de pico. Mesmo assim, ele não esconde a surpresa inicial de ter sido escolhido, e fala da falta que sente do convívio diário:

— Tu ficas com o sentimento, né, porque tu te acostumas com os passageiros, com o horário. Não esperava sair, mas aí me botaram em outra (linha), abriu uma vaga e me botaram ali.

O trabalhador relata que, ao contrário de outros colegas, não deseja seguir a carreira de motorista, e ainda não foi orientado a participar de cursos de qualificação profissional. No entanto, garante estar preparado para trocar de emprego em um futuro próximo.

— A gente não pode ficar dependendo a vida inteira de ser cobrador, uma hora isso ia acabar e não tem o que fazer. Quando saiu a notícia da extinção, já me preparei, atualizei meu currículo para caso me mandarem embora eu possa entrar em algum outro setor, qualquer setor. O importante é trabalhar — conclui.

Sindicato registra poucas reclamações

Ainda que a classe de trabalhadores do transporte público siga insegura quanto ao futuro, o Sindicato dos Rodoviários de Porto Alegre não registrou intercorrências no primeiro mês. A entidade sempre se colocou contrária ao projeto de lei, tendo ameaçado greves ao longo do período em que o projeto de extinção dos cobradores tramitou na Câmara Municipal.
Entretanto, o presidente do sindicato, Sandro Abbade, admite que o andamento do processo está acima das expectativas, embora ainda haja algumas ressalvas quanto ao bônus salarial dado aos motoristas que acumulam funções, que hoje é de 10%.

— Nós achávamos que haveria mais reclamações, mas, por enquanto, está tranquilo. Mais adiante, vamos querer revisar o aumento salarial aos motoristas. Queremos que seja no mínimo de 20% — ressalta.

A Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) planeja retirar mais cobradores a partir de abril. Para isso, as companhias de ônibus devem, ao longo deste mês, enviar novas sugestões de linhas que poderiam aderir ao projeto. A lei prevê que, até o final do ano, 25% da frota esteja somente com motorista, chegando a 100% em 2025. O município tem como meta atingir 12,5% até o início do segundo semestre deste ano.

Os empresários estimam que a medida irá causar uma redução de R$ 0,20 por ano no preço da passagem.

Confira as linhas que já circulam sem cobrador

/// C1 Circular Centro;
/// C5 Circular 4 Distrito/Moinhos de Vento;
/// 255 Caldre Fião;
/// 3762 Herdeiros/Esmeralda/A Carvalho/Alimentadora;
/// A348 Alimentadora Jardim Bento Gonçalves;
/// A360 Alimentadora IPE;
/// 620 Iguatemi/Vila Jardim;
/// 654 Educandário Petrópolis;
/// 7052 Aeroporto/Ceasa;
/// 188 Assunção;
/// 2633 João Pessoa/Orfanotrófio;
/// A74 Alimentadora Canta Galo/Lami/Extrema;
/// A69 Alimentadora Canta Galo/Lami /B. Novo;
/// C3 Circular Urca;
/// 345 Santa Catarina;
/// 473 Jardim Carvalho/Jardim do Salso;
/// SD72 Santa Rosa/Anchieta Semidireto;
/// SD73 Fernando Ferrari/Anchieta Semidireto;
/// 251 Alpes;
/// 274 Glória/Azenha/Cascatinha;
/// 2741 Glória/Cascatinha/Azenha.
/// O627 Orla Agostinho;
/// O662 Orla Rubem Berta;
/// O491 Orla/Passo Dorneles;
/// O398 Orla/Pinheiro;
/// O171 Orla Ponta Grossa/Serraria;
/// O210 Orla Restinga Nova.

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