Notícias



Enem para todxs

Porto Alegre terá primeiro cursinho preparatório para o Enem destinado a travestis e transexuais

Totalmente gratuito, TransEnem é uma escada para que travestis e transexuais ingressem no ensino superior. Aulas iniciam dia 11

08/04/2016 - 13h10min

Atualizada em: 05/08/2016 - 13h42min


Inscritos se encontraram no último sábado, dia 2

A última experiência em sala de aula foi traumática para Bernando Gonçalves. Aos 20 anos, ainda morava em Belém, no Pará, estado onde nasceu, e estudava Rede de Computadores na Faculdade de Tecnologia da Amazônia. Já havia cortado o longo cabelo ondulado e abandonado o nome feminino dado pelos pais. Mas a lista de chamada não aceitava. Muito menos os colegas. Foi xingado de "caminhão" em sala de aula, termo equivalente a "sapatão", palavra usada para se referir às mulheres que sentem atração por outras mulheres.

Bernardo, no entanto, sentia-se homem. Deslocado e com medo de ser humilhado, largou os estudos e veio a Porto Alegre atrás de um amor virtual. Morando aqui há seis anos e já com outra companheira, criou coragem e agora voltará a estudar. Dessa vez, em um ambiente onde pessoas como ele são bem vindas. Com início na próxima segunda-feira, dia 11, o TransEnem será o primeiro cursinho da capital gaúcha com o propósito de preparar travestis e transexuais para o Exame Nacional do Ensino Médio, a maior prova de acesso às universidades brasileiras.

Bernardo Gonçalves, 27 anos, ficou marcado pelas piadas que os colegas faziam na faculdade
Foto da infância de Bernardo

O TransEnem foi pensado pela ativista e jornalista Nanni Rios, que ao tomar conhecimento de iniciativas semelhantes em outras cidades do país reuniu interessados em organizar o cursinho em Porto Alegre. As aulas vão acontecer no prédio da Secretaria da Justiça e dos Direitos Humanos do RS, que abraçou o projeto cedendo o espaço. Cerca de 50 professores se prontificaram a colaborar. Eles não cobrarão pelas aulas. Algumas empresas privadas já manifestaram interessem apoiar o projeto doando material didático.

De acordo com a travesti Keila Simpson, secretária da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), cursinhos preparatórios como o TransEnem começaram a surgir quando o Ministério da Educação permitiu que travestis e transexuais solicitassem por telefone o uso do nome social para inscreverem-seno Enem. Isso foi em 2014. O nome social é aquele escolhido quando trans e travestis decidem assumir o gênero com o qual se identificam.

Em 2015, o número de candidatos que pediram para usar o nome social na ficha de inscrição pulou para cerca de 300. Na edição deste ano, com iniciativas espalhadas no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Paraná e agora no Rio Grande do Sul, Keila vê chances de que o MEC facilite o processo e disponibilize a opção no próprio formulário de inscrição.

Em Porto Alegre, 27 inscritos se preparam para o início do cursinho.Algumas dessas pessoas farão o Enem pela segunda ou terceira vez. Outras encaram a possibilidade do estudo depois de muitos anos longe dos livros. Para uma população que sofre com incompreensão e preconceito, a sala de aula costuma causar apreensão. No TransEnem, a garantia é de que a identidade e o nome escolhidos por alunos e alunas serão respeitados. Mais do que isso, detalhes totalmente valorizados.

O que as mulheres dizem sobre abuso sexual no transporte público
Famosos ou anônimos: histórias de pessoas que nasceram no corpo errado

Segurança para se concentrar nos estudos

Saído a pouco tempo do ensino médio, Isaac Ribeiro, de Alvorada, conseguiu uma vaga no cursinho pré-vestibular da UFRGS, mas preferiu o TransEnem justamente pelo medo de colegas e professores não respeitarem sua identidade. No último sábado, dia 2, ao participar da aula de apresentação do cursinho, sentiu que estava em lugar seguro.

– Gente, eu tô em casa – alegrou-se.

Para o jovem de 19 anos, o período de escola não foi dos mais fáceis.Cresceu indo à Igreja e reprimia perguntas que fazia em relação à própria identidade. Usava as roupas dos irmãos e queria ser como eles. Na adolescência,entrou em depressão quando cedeu à pressão e refletiu na imagem pessoal o gênero imposto pelos órgãos genitais. Tentou ser "normal" e vestir-se como mulher. A frustração foi descontada na comida. Na escola, a gozação dos colegas era por causa do peso.

– Passei esse tempo com a cara enterrada nos livros para não encarar a realidade – recorda.

Há cerca de seis meses, parou de usar o nome com que foi registrado ao nascer e, embora não sinta plena afinidade com o gênero masculino, ao menos conseguiu assumir que não tem nada a ver com ser mulher. No momento de indefinição em que se encontra, tem certeza de uma coisa: vai fazer Letras com ênfase em Inglês.

Ao terminar ensino médio, Isaac Ribeiro criou coragem para assumir a identidade masculina

Em uma sala de aula plural prometida pelo cursinho, o paraense Bernardo espera aprender com os colegas e ajudá-los com as questões não apenas do Enem, mas da vida. Depois da hostilidade dos ambientes escolares tradicionais, construir relações de coleguismo é algo que pode acontecer pela primeira vez na vida de todos eles. A expectativa é que o TransEnem dê liberdade.

– Não vai ter preconceito, piada de mau gosto. Vou ser quem eu quero ser, vou ser quem eu sou– espera Bernardo, que usará a nota do Enem para tentar vaga num curso de Fotografia em faculdades do Rio Grande do Sul e de Santa Cantarina.

Conteúdo do Enem com noções de direitos humanos

Além de lições sobre matemática, linguagens, ciências da natureza e ciências humanas, áreas de conhecimento cobradas no Enem, o cursinho dará noções de direitos humanos e abordará a questão da população LGBT (gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais). Na opinião de uma das organizadoras do TransEnem, a advogada Luísa Stern, integrante da Comissão Especial da Diversidade de Gênero da OAB do Rio Grande do Sul, o cursinho surge como alternativa a trans e travestis que querem voltar a estudar mas sentem receio de não serem bem recebidos.

– As pessoas trans são excluídas do sistema formal de ensino, que não respeita a identidade de gênero. A ideia é oferecer algo que essas pessoas não encontrarão em outros cursos – explica Luísa.

Há muito mais tempo longe da sala de aula, a técnica em nutrição Ludmylla Vechio, 39 anos, de Sapucaia do Sul, tem uma visão prática do cursinho: quer extrair o máximo das aulas para se dar bem na prova. Consciente dos seus direitos, garante que mesmo que escolhesse estudar para o Enem em um cursinho tradicional não se acanharia e conquistaria respeito entre os colegas. Ludmylla não guarda traumas da escola. Quando virou mulher transexual, já havia passado pelo ensino médio e concluído o curso técnico.

A técnica em nutrição Ludmylla Vechio quer que o TransEnem a prepare para atingir bom desempenho na prova

Ainda assim, sabe que a sala de aula causa exclusão e que o TransEnem traz a sensação se segurança. Reconheceu o clima de receptividade quando compareceu ao encontro do último sábado.

– Me senti muito bem acolhida. Quando cheguei, as pessoas me abriram um sorriso – descreve.

Com o resultado da prova do Enem, tentará, na primeira opção, vaga em cursos de Psicologia. Como segunda, Nutrição.

Sobre o TransEnem

Início das aulas: 11 de abril

Horários: segundas, terças e quartas-feira, das 13h30 às 17h30,

Local: prédio da Secretaria da Justiça e dos Direitos Humanos do RS

Inscrições estão encerradas, mas organização do cursinho pode abrir vaga para quem perdeu período de matrícula e tem interesse em se preparar para o Enem. Também há possibilidade de abrir turma em outros horários. As vagas são exclusivas para travestis e transexuais.

Contato: pelo Whatsapp (51) 9343-0817 ou pelo e-mail transenempoa@gmail.com

Quer entender melhor o assunto da questão de gênero? Confira nosso glossário*:

Gênero: a sociedade costuma usar dois gêneros para classificar as pessoas: feminino e masculino. O que a comunidade trans e LGBT defende é que o gênero não tem que refletir o sexo (órgãos genitais). Uma pessoa que nasceu com vagina, por exemplo, pode identificar-se como mulher ou como homem. Mas há pessoas como o jovem Isaac Ribeiro, 19 anos, que não se identificam plenamente nem com o gênero feminino nem com o masculino. Isaac se define como "gênero fluído", aquele que não se estabeleceu ainda - ou nunca vai se estabelecer.

Identidade de gênero: é a forma como a pessoa expressa sua identidade. É a imagem que ela passa do gênero que ela é. Um homem homossexual pode se identificar com o gênero masculino e não necessariamente expressar-se com roupas e adereços femininos. Apenas sente atração sexual por outros homens. A mesma coisa acontece com a mulher. As travestis são pessoas nascidas com órgãos genitais masculinos mas que não se reconhecem como sendo do gênero masculino. A identidade de gênero das travestis é feminina. Das mulheres transexuais, também.

Sexo biológico: são os órgãos genitais. A comunidade trans entende que o sexo biológico não necessariamente interfere no gênero da pessoa. Genitais são uma coisa, identidade de gênero é outra.

Transexual: pessoa que em certo momento da vida percebeu que o sexo dado a ela quando nasceu não tinha nada a ver com quem era. É o caso de todos os entrevistados citados na matéria. Algumas pessoas transexuais sentem necessidade de fazer cirurgia para alterar a anatomia dos órgãos genitais. O processo se chama de redesignação sexual.

Travesti: É pessoa que nasceu com órgãos genitais masculinos mas que nunca se viu como sendo do gênero masculino. Cedo ou tarde na vida, se reconheceu como sendo do gênero feminino. Passou a vestir-se com roupas femininas, a usar cabelo feminino. Mas não sentiu necessidade de fazer cirurgia para alterar os órgãos genitais. A comunidade trans frisa: é "a" travesti, e não "o" travesti.

Nome social: é o nome adotado por trans e travestis quando reconhecem que são de outro gênero e criam coragem para assumir isso. A transição de trans e travestis é um processo geralmente marcado por dor e preconceito. Bernardo Gonçalves, 27 anos, escolheu esse nome porque Bernardo significa "ser forte, "bravo como um urso".

– Pensei em tudo o que enfrentei e ainda vou enfrentar. Preciso ser forte –contou.

Já Isaac Ribeiro, 19 anos, escolheu o nome de origem hebraica por significar "filho da alegria", "aquele que ri". Ao abandonar o gênero com o qual não se identificava, Isaac decidiu ser feliz.

A comunidade trans pede que as pessoas respeitem o nome social escolhidos por travestis e transexuais. É um sinal de que a sociedade os aceita.

Marca "x": é a letra usada para retirar o gênero das palavras. Já foi usado o @. Por exemplo, quando usamos "todxs" lá em cima da matéria, na cartola, quisemos nos dirigir às pessoas de gênero feminino e masculino, e até as que não decidiram. É uma marca usada principalmente pela militância trans e LGBT, mas também por qualquer pessoa que defende que é possível fazer uso de uma linguagem neutra.

* Com ajuda do Gemis - Gênero, Mídia e Sexualidade

Produção Karine Dalla Valle

Leia outras notícias
Curta nossa página no Facebook




MAIS SOBRE

Últimas Notícias