Habitação
O futuro dos moradores da Vila Nazaré longe do Salgado Filho
Obras de ampliação da pista do aeroporto exigirão a mudança de toda a comunidade comunicademoradores
Um “voo” está modificando a vida dos moradores da Vila Nazaré, na zona norte de Porto Alegre. O destino da viagem: dois condomínios populares na mesma região da cidade, nos bairros Sarandi e Rubem Berta. É para estes pontos que a população do local deve ir, com o intuito de liberar a área do sítio aeroportuário da Capital.
As duas opções de moradia apresentadas pelo poder público agradam a uns e desagradam a outros. Isso porque o bairro, que existe há mais de 60 anos e onde vivem mais de 1,3 mil famílias, será dividido em dois.
A remoção da Vila Nazaré de seu chão de origem não é um tema novo. Há 10 anos, outra comunidade, também próxima da cabeceira da pista do aeroporto, foi realocada. Hoje, o antigo espaço ocupado pela Vila Dique está cercado por muros altos com arames cortantes em seu topo, na tentativa de evitar novas ocupações. Este deve ser o mesmo destino da Vila Nazaré, que teve as tratativas para sua realocação aceleradas após a privatização do Aeroporto Internacional Salgado Filho – agora chamado de Porto Alegre Airport pela empresa alemã Fraport, que assumiu a gestão do espaço.
A retirada dos moradores das áreas ocupadas a leste do aeroporto é uma ação essencial para que se cumpra um dos principais pontos da concessão do terminal aéreo: a ampliação da pista de pousos e decolagens. Segundo a Fraport, “a área deve estar liberada até o fim deste ano”. A conclusão dos trabalhos na pista deve ocorrer em dezembro de 2021, conforme o cronograma da empresa alemã.
Faltando ainda mais de dois anos para este prazo, o Departamento Municipal de Habitação (Demhab) deu início às transferências de moradores no dia 21 de junho.
Prioridade
Neste primeiro momento, a prioridade é fazer a mudança “de quem mais precisa”, explica o superintendente de ação social e cooperativismo do Demhab, Emerson Correa. Por enquanto, dos dois empreendimentos para onde os moradores da Vila Nazaré serão encaminhados, apenas um, o Loteamento Senhor do Bom Fim, no bairro Sarandi, está com residências aptas a receber habitantes.
Famílias de cadeirantes, idosos e pessoas com deficiência e dificuldade de locomoção estão sendo levadas para as unidades habitacionais. Até esta quinta-feira, 41 famílias estavam ocupando o novo espaço. Conforme o superintendente do Demhab, o Senhor do Bom Fim abrigará 364 famílias. O local não é distante da Vila Nazaré, está a cerca de cinco quilômetros, bem próximo da Avenida Assis Brasil.
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Entretanto, é o destino das outras mil famílias que não irão para o Senhor do Bom Fim que preocupa alguns moradores. Distante 10 quilômetros do aeroporto, no limite entre Porto Alegre e Alvorada, e numa área bem menos centralizada do que o outro condomínio, o Loteamento Irmãos Maristas, no bairro Rubem Berta, terá capacidade para receber 1.298 famílias.
E é para lá que irão as outras cerca de mil famílias da Nazaré. O local também será ocupado por pessoas de duas áreas próximas do Rubem Berta, que vivem em situação de risco. As obras deste condomínio estão 95% concluídas.
– Estamos atualizando o cadastro de moradores com o posto avançado que montamos na entrada da Vila Nazaré. A partir do final de agosto, faremos também mudanças para o Irmãos Maristas. A ideia é que o processo esteja concluído até o final do ano – projeta Emerson.
MPF ajuíza ação
Uma ação civil pública foi ajuizada contra a Fraport relativa à retirada das casas da Vila Nazaré e à realocação dos moradores. Os procuradores entendem que o reassentamento é de responsabilidade da empresa alemã. Já o grupo diz que a obrigação não consta em seu contrato com a União.
Na ação, assinada em consórcio pelo Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do RS, Defensoria Pública da União e Defensoria Pública do RS, há exigência para que a empresa apresente em juízo, no prazo de 10 dias, proposta de solução habitacional que abranja a totalidade das pessoas que residem na Vila Nazaré.
“Proposta essa que deve ser adequada aos moradores e respeitar seu direito de escolha, garantindo-se a isonomia de tratamento inclusive com relação às opções disponíveis, e com indicação de valores adequados e suficientes, bem como garantindo a continuidade dos meios de geração de renda das famílias”, cita a ação.
Por nota, a Fraport informou que “acredita na Justiça brasileira e está confiante que receberá uma decisão favorável para continuar o projeto. Por outro lado, está desapontada com a forma que certas entidades públicas estão tratando empresas privadas e investidores estrangeiros.”
Negociação para os que não saírem voluntariamente
Os dois condomínios construídos para abrigar as famílias da Vila Nazaré foram bancados com recursos da Caixa Econômica Federal, obtidos por um acordo entre município, a União e o banco.
A obra é financiada por meio do programa Minha Casa Minha Vida. Surge aí um ponto de incerteza para alguns moradores. Um dos requisitos para ser contemplado pelo Minha Casa Minha Vida é ter renda familiar de até R$ 3,6 mil.
Rodando pela Vila Nazaré, é possível notar que em alguns becos e vielas, barracos pequenos e casebres insalubres se acumulam. Sem saneamento básico e acesso a todas as ruas, lixo e mau cheiro aparecem em alguns pontos. Para estes, a transferência parece um bom negócio.
Entretanto, como em uma pequena cidade de 6 mil habitantes – população estimada do local, conforme o Demhab –, boas residências e comércios amplos também aparecem. Casas de alvenaria com pátio amplo, mercadinhos, pequenas lojas de roupas, entre outros comércios, fazem parte do cenário. E, para quem vive nestes locais, ter a renda superior aos R$ 3,6 mil é uma incerteza de futuro.
Aliás, ter esta renda, na Vila Nazaré, não representa, necessariamente, uma boa condição financeira. Como algumas famílias são grandes, vivendo na mesma casa – ou em puxadinho, não considerado residência pelo Demhab – e com todos trabalhando, o teto do programa federal é ultrapassado.
Análise
A prefeitura diz que os casos serão analisados.
– Teremos informações melhores depois da atualização cadastral. Mas nestes casos de renda é feita análise, visto caso a caso. Algumas famílias são dois núcleos familiares no mesmo espaço, ou seja, podem ser separadas e ocuparem dois espaços nos novos condomínios. Agora, para os casos em que a renda é mesmo superior e não há o que fazer, a gente deve encaminhar para outro tipo de solução, que será dada pela própria Fraport. A empresa resolve se faz compra assistida, indenização ou outra solução – salienta o superintendente de ação social e cooperativismo do Demhab, Emerson Correa.
Até o momento, as pessoas que estão deixando a comunidade têm feito isso de maneira voluntária. Conforme Emerson, o Demhab não fará retiradas forçadas. Para o superintendente, é compreensível o reassentamento gerar divergências:
– Algumas pessoas não quererem a saída é um processo normal. O trabalho da prefeitura é ofertar o que nós temos, que são os dois condomínios construídos para estas famílias. As unidades estão à disposição de quem tem interesse. Quem não quer, a gente respeita.
Por meio de nota, a Fraport confirmou que fará negociações individuais com cada uma das famílias que não deixarem a área de forma voluntária. “As negociações serão sigilosas e individuais”, diz o comunicado. Sobre a possibilidade de acionar a Justiça para retirada destas pessoas, a empresa garante que “não existe nenhuma ação judicial em execução pela empresa no caso da Vila Nazaré”.
Aprovadas pelos primeiros moradores
No Loteamento Senhor do Bom Fim, onde estão chegando os primeiros egressos da Vila Nazaré, a sensação geral é de aprovação. Além de blocos com apartamentos, o local conta com algumas casas adaptadas para pessoas com deficiência. É o caso do agricultor aposentado Roseno Valensuela do Nascimento, 64 anos. Com parte da perna direita amputada, ele depende de cadeira de rodas para se movimentar. Organizando a mudança, ele relata as primeiras impressões:
– Lá, eu tinha uma casinha de madeira. Agora, estou num ambiente bom, todo adaptado, com rede de esgoto, luz e água regularizada. Tenho outros dois filhos que também vão morar em casas aqui, espero que fiquem perto de mim.
Vizinho de Roseno, Clodoaldo Araújo de Oliveira, 45 anos, doou uma cama para o idoso. Apesar de ser da Vila Nazaré, Clodoaldo não residia mais no local havia oito anos, recebia aluguel social. A vinda para a nova casa foi um alívio.
– O local onde eu estava era complicado, a casa tinha muita umidade. É difícil para o meu filho, que é especial. Agora, melhorou 100% – avalia ele.
Aposentada por problemas auditivos, Marlene Silveira Neves, 60 anos, se mudou na semana passada. Junto dela, vieram o filho, o eletricista desempregado Tiago Neves Garcia, 37 anos, e quatro cachorros, os xodós de Marlene.
– Mailon, Leão, Jack e Billy – aponta ela.
A idosa também aprovou o novo lar:
– Minha casa na Nazaré era de madeira, estava numa situação péssima. Gostei da casa nova e do atendimento que recebemos.
Agentes do Demhab mantêm plantão no condomínio para atender aos primeiros moradores. O trabalho deve seguir até todas as unidades estarem ocupadas.
Incertezas dos que ainda não foram
Além de questões como renda e distância, outra preocupação na Vila Nazaré é a sobrevivência financeira. Há quem viva da comunidade, mantendo seu negócio dentro dos limites da Nazaré. Incluem-se aí, não apenas comerciantes, mas também recicladores. Em nenhum dos dois novos condomínios há, atualmente, áreas comerciais ou espaços para o trabalho de reciclagem. O superintendente do Demhab promete mudanças:
– A Fraport construirá áreas comerciais nos locais. Um posto de saúde e uma creche também devem ser construídos. Tudo deve estar pronto até o final do ano. No caso da reciclagem, vamos trabalhar para encaminhar as pessoas para os centros de triagem mais próximos.
A Fraport afirma que “está em processo de contratação para essas construções, que serão iniciadas tão logo for finalizado o cadastro dos comerciantes”. O levantamento está sendo feito pelo Demhab.
Divergência
Dono de uma lancheria, Ari Zoli Trindade, 54 anos, está apreensivo. No comércio que administra há 30 anos, oferece mesas de sinuca e uma cancha de bocha:
– Esse aqui é um ponto de encontro do bairro, eu não sei o que fazer se ficar sem meu comércio.
Em uma rua próxima dali, a família do técnico de refrigeração Odil Cardoso, 54 anos, também está preocupada.
– Moramos em cinco numa casa onde todos trabalham, como a renda não vai passar de R$ 3,6 mil? – indaga ele.
O garçom Adilson Pereira, 49 anos, mora há 25 anos no local:
– Minha esposa sai antes de amanhecer para trabalhar, sai com garantia de segurança e transporte público próximo. Quem me garante que vamos estar seguros para onde nos mandarem?