Educação Básica
Previsto para ser oferecido em metade das escolas até 2024, ensino de tempo integral ainda é escasso no RS
Na rede estadual, 4,2% das instituições de Ensino Fundamental têm a modalidade; as que têm, aprovam
Houve um tempo em que a implementação do ensino de tempo integral na Educação Básica, com pelo menos sete horas de atividades letivas por dia, era prioridade entre os governos. Em 2014, a lei federal que instituiu o Plano Nacional de Educação previa que, até 2024, no mínimo metade das escolas públicas ofereceria a modalidade, o que foi reforçado por uma lei estadual do mesmo ano.
Hoje, faltando menos de três anos para o vencimento do prazo, a meta está longe de ser cumprida. Na rede estadual, por exemplo, 91 das 2.145 instituições que oferecem Ensino Fundamental possuem a modalidade de tempo integral, o que representa 4,2% das escolas. Na rede municipal de Porto Alegre, o número atual é zero – nenhuma escola de Ensino Fundamental possui tempo integral. No entanto, a Secretaria Municipal de Educação (Smed) planeja implementar a modalidade em seis nos próximos três anos, sendo duas em cada ano.
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Autora da lei estadual, a deputada Juliana Brizola (PDT) destaca que em vez de ser ampliada, a oferta de tempo integral vem sendo reduzida.
— Sucessivamente, os governos vêm descumprindo essa lei, infelizmente, porque, quando a fizemos, pensávamos que, progressivamente, teríamos 100% da rede em tempo integral — lamenta a parlamentar.
O Censo Escolar de 2020 traz dados percentuais de escolas de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio que possuam pelo menos 25% dos alunos em jornada de tempo integral. Enquanto na rede pública 26,6% das instituições declararam oferecer a modalidade – número puxado para cima pelas escolas de Educação Infantil – o índice é de 64,1% na rede privada, segundo levantamento do Sindicato do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinepe/RS).
A oferta de tempo integral no Ensino Fundamental gaúcho foi iniciada em 2004. Na época, 23 escolas estaduais contavam com o formato. O número chegou a pelo menos 104, em 2016, e hoje está em 91, onde 12.783 alunos são atendidos. A secretária estadual de Educação, Raquel Teixeira, reconhece a importância de aumentar esses números – ela foi, inclusive, autora de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), em 2007, que previa o atendimento em tempo integral nas escolas públicas, quando era deputada federal.
— É uma situação que precisa mudar. Somos o terceiro pior estado em oferta de tempo integral, atrás só do Pará e do Paraná. Eu tenho uma atenção muito especial para esse tema e espero ter tempo de mudar algumas coisas — afirma a secretária.
Apesar de ter intenção de ampliar a oferta do tempo integral, Teixeira, que está há três meses no cargo e tem o desafio de enfrentar as perdas de aprendizagem e a evasão trazidas pelo longo tempo dos estudantes longe das escolas durante a pandemia, ainda não traçou um plano estabelecido para pôr a ampliação em prática. Uma das possibilidades seria criar um ensino integral híbrido, com parte das atividades em sala de aula e, no contraturno, aulas complementares. Entretanto, a gestora aponta que o modelo instituído precisa ser bem pensado.
— Tem que ser um modelo unificado, para Ensino Fundamental e Ensino Médio, e fazer sentido na vida do aluno. Lembro que, quando eu era deputada, na primeira audiência pública que eu fiz com estudantes, uma menina levantou a mão e disse que detestava a escola. Ampliar as horas de aula em uma escola que o aluno odeia não tem sentido. O estudante precisa sentir que está valendo a pena para ele ficar mais tempo lá — observa.
A secretária já passou pelo desafio de implementar o ensino de tempo integral quando comandava a Secretaria da Educação de Goiás. Lá, criou uma bolsa de estudos de R$ 100,00 mensais para os estudantes dessa modalidade, a fim de cativar aqueles que, precisando de dinheiro, acabam fazendo “bicos” no contraturno. No Rio Grande do Sul, que passa por uma crise fiscal, não sabe se esse tipo de ação seria possível. O dinheiro é um impasse na própria implementação do tempo integral, já que ele é mais caro – como os alunos passam dois turnos na instituição, uma escola que, hoje, atende 350 estudantes por turno, totalizando 700, passaria a ter condições de receber apenas 350. O custo da merenda também aumenta, uma vez que são oferecidas, nesse formato, quatro refeições por dia a cada criança e adolescente.
Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e ex-diretora de Currículos e Educação Integral da Secretaria de Educação Básica no Ministério da Educação (MEC), Jaqueline Moll é uma das principais referências no Brasil quando se fala em educação integral, concepção que compreende que a educação deve garantir o desenvolvimento dos sujeitos em todas as suas dimensões – intelectual, física, emocional, social e cultural. Ainda que não garanta em si uma educação integral, o tempo integral é uma das formas de alcançá-la, conforme a concepção do antropólogo Darcy Ribeiro.
— Não se pode querer educar uma geração com menos de oito horas de aula por dia, nem querer educar crianças das classes populares em menos tempo, quando os pais trabalham o dia inteiro — defende a docente.
Moll foi responsável pela criação do Programa Mais Educação, no MEC, que visava a ampliação da jornada, com atividades intersetoriais no contraturno. Ela conta que o programa chegou a atender 8 milhões de estudantes em todo o País, mas foi interrompido em 2016. No lugar dele, foi implementado o Programa Novo Mais Educação, que dedica a ampliação da jornada a atividades voltadas especificamente para Matemática e Língua Portuguesa.
— Essas descontinuidades políticas liquidam com a possibilidade de uma educação integral. Na época do Mais Educação, as crianças vinham assistir shows na UFRGS, uma se tornou campeã de judô, porque é na escola que esses talentos são construídos, por meio da combinação de instituições que façam essa diferença — pontua a professora.
Tempo integral qualifica o vínculo e a aprendizagem, dizem diretores
A Escola Estadual de Ensino Fundamental Anselmo Luigi Piccoli, de Bento Gonçalves, tem o tempo integral no seu DNA. Criada em 1994, a instituição era um dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps) feitos pelo então governador Alceu Collares (PDT), que replicou o projeto posto em prática por Leonel Brizola (PDT) quando governava o Rio de Janeiro. A escola funcionou por três anos em tempo integral, na época, mas o modelo acabou sendo suspenso. Em 2016, foi retomado para os alunos do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental.
Diretora há 24 dos 26 anos de existência da Anselmo Luigi Piccoli, Tânia Regina Ducatti Sasso relata que a retomada do ensino de tempo integral foi fácil na escola, uma vez que a instituição já havia sido construída tendo esse formato em vista e, por isso, possui um prédio maior, com quase 4 mil metros quadrados, refeitório para 200 alunos, salas de aula amplas e laboratórios.
— O tempo integral otimizou o espaço da escola. Quando a criança pode ficar mais tempo na escola, otimizamos o recurso público e melhoramos a aprendizagem do aluno. Essa é a nossa proposta, além de termos uma importância social, já que os pais podem trabalhar, enquanto a criança está segura na escola — analisa a diretora.
Durante a pandemia, as aulas seguiram em tempo integral, ainda que de forma remota. Desde maio, com a liberação do ensino híbrido, mais de 90% dos estudantes retornaram para a modalidade presencial. Para 8 de setembro, o tempo integral será retomado. Na rotina da escola, estão aulas como Língua Portuguesa, Matemática, Ciências e Geografia pela manhã, enquanto, à tarde, há a oferta de disciplinas como Apoio Pedagógico, Culturas Digitais e Experimentação Científica.
O recurso a mais que as escolas de tempo integral recebem, na comparação com as de tempo parcial, é basicamente o das quatro merendas diárias. A diretora conta que o modelo gera desafios de gestão e depende de a comunidade escolar “comprar” a ideia. Entretanto, não tem dúvidas sobre a eficácia.
— Vimos crianças começarem no tempo integral no 1º ou 2º ano do Ensino Fundamental e, hoje, no 5º ou 6º ano, são crianças diferentes das que vêm de outras escolas. O tempo integral melhora a aprendizagem e o desempenho escolar. Trabalhamos muito, mas os resultados estão aí: temos um bom Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, um indicador de qualidade de ensino do governo federal), de 6,1 nos Anos Iniciais — conclui Tânia, orgulhosa.
A Escola Estadual Setembrina, de Viamão, já oferecia tempo integral para seus alunos de Ensino Médio desde 2017. Em 2019, convidada pela Secretaria Estadual de Educação (Seduc), resolveu ampliar a oferta também para os Anos Finais do Ensino Fundamental, começando pelo 6º ano. Em 2020, foram contemplados o 6º e o 7º ano, e, em 2021, também foi agregado o 8º ano. Para 2022, está prevista a inclusão do 9º ano no formato.
Para dar conta da demanda de espaço físico gerada pela mudança, a instituição não dará mais aulas para Anos Iniciais. O diretor da Setembrina, Ednilson José Roesler, diz estar “apaixonado” pela experiência com o tempo integral.
— É um modelo que permite um conhecimento muito mais amplo da vida do estudante. É integral não só no tempo, mas na vivência emocional e física. A pandemia prejudicou a ampliação, mas nós assumimos esse desafio e, hoje, temos ótimos resultados — salienta Roesler, que, no Ensino Médio, viu a escola ficar em primeiro lugar, em 2019, na qualidade de ensino entre as escolas estaduais de Viamão.
Diferentemente da escola de Bento Gonçalves, a de Viamão mistura nos dois turnos as disciplinas mais tradicionais e os componentes novos, como Esporte, Lazer e Recreação, Projeto de Pesquisa e Cultura Digital. A procura tem sido alta, tanto por pais que trabalham muito e preferem que os filhos fiquem mais tempo na escola, como por famílias que acreditam no tempo integral como forma de aprimoramento do aluno.
— Normalmente, os alunos realmente superam, aqui, déficits deixados em outras escolas. Temos alunos que entraram no 6º ano com um perfil e agora, no 8º ano, cresceram muito, emocionalmente e em termos de aprendizagem. Vemos que eles criam uma conexão com a escola — observa o diretor.
Roesler afirma que o que torna possível o tempo integral é todo mundo "pegar junto" – senão, não funciona.
— Temos um plantão de professores e uma coordenação pedagógica muito alinhados à perspectiva de tempo integral. Todo mundo tem que pegar junto, porque se o professor não vê o aluno como uma pessoa na sua integralidade, não funciona. A escola precisa virar um espaço de troca para estudantes e professores — avalia.