PAPO RETO
Manoel Soares: "A língua coçou"
Colunista escreve no Diário Gaúcho aos sábados.
Um amigo recentemente ganhou uma grana por conta de sair do trampo, e veio todo feliz me contar que usou parte da grana para comprar um carro importado que era seu sonho. Eu confesso que não quis cortar a onda dele, mas na hora me veio à mente que a casa dele chovia dentro e que os dois filhos dele tinham muita dificuldade de aprendizado.
Meu primeiro impulso foi dizer que ele tinha que investir a grana na melhoria da casa e na educação dos filhos. Depois segurei minha onda, não sei se tenho moral pra ficar ditando o que cada um faz da vida. Não faço ideia dos traumas que ele tem para fazer essa compra.
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Eu mesmo, quando criança, não tinha grana para jogar fliperama, ficava ali olhando a galera jogar Street Fighter e quando me deixavam disputar um round ficava todo feliz. Uma vez decidi mudar isso, e após minha mãe receber o salário, esperei ela dormir e peguei o dinheiro. Gastei todo no flíper e naquele dia fui rei na quebrada, paguei fichinha para todos e o dono da birosca até me chamou pelo nome, coisa que nunca tinha feito. Ao chegar em casa, minha mãe não me bateu, só disse que todos os problemas que viveríamos naquele mês seriam por conta desse meu ato, e foi um mês infernal.
Foi uma lição dolorosa, mas aprendi. Hoje, depois de velho, comprei um fliperama que fica na minha sala e jogo a hora que eu quiser, sem a culpa de prejudicar pessoas que amo. Não sei se a escolha desse meu amigo não tem um trauma assim. Mas a língua coçou para dizer algo.