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Crie o Impossível

"O que move o mundo são as perguntas. Quanto mais eu digo que não sei, mais oportunidade tenho de aprender", diz Tinga

Ex-jogador abandonou a escola em Porto Alegre ainda na infância, mas retomou os estudos depois de se aposentar no futebol

01/06/2022 - 22h08min


Karine Dalla Valle
Karine Dalla Valle
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Crie o Impossível / Divulgação
O ex-jogador Tinga será um dos palestrantes do Crie o Impossível, que ocorre no Beira-Rio e será transmitido para estudantes de todo o Brasil

Quando Tinga ligar o microfone no Beira-Rio para contar sua história ao público do Crie o Impossível, na próxima sexta-feira (3), vai falar que, para se consagrar ali e em outros estádios de futebol, teve de abandonar os estudos. Como a palestra é destinada a motivar os alunos de escolas públicas, também falará a respeito de outro capítulo da sua vida, esse menos conhecido: depois de passar pelo Grêmio, pelo Inter e por clubes estrangeiros, se matriculou no Ensino de Jovens e Adultos (EJA). Ele tinha 37 anos, estava aposentado dos campos e de volta à uma sala de aula em Porto Alegre. 

Se a única alternativa para o menino da Restinga era sair da Escola Alberto Pasqualini e apostar no futebol, o sucesso e a maturidade trouxeram de volta a chance de aprender. Tinga não concluiu todas as séries no EJA, mas a coragem para sentar em uma classe novamente é suficiente para virar inspiração. Para todos, não só para alunos de escolas públicas.

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Você abandonou os estudos na 5ª série para se dedicar ao futebol. Era só um menino. Como se sentiu?

Eu era apaixonado pelo futebol, não via problema. Aos meus olhos, naquela época, deixar de estudar para seguir o futebol era bom. Era o sonho mais possível para a periferia. Via mais chance de transformação no futebol do que dentro da escola, sinceramente.

Você já contou que o futuro possível para os meninos na Restinga era ser traficante.

E é uma cultura ainda mais forte hoje no Brasil do que no passado. Quem está com tênis bom, bem vestido, lá na periferia, geralmente está envolvido em coisa ilícita. Hoje, com mais idade e experiência, temos essa preocupação de que as crianças tenham outro tipo de inspiração. O primeiro jogador que eu idolatrei, o Caíco (Airton Graciliano dos Santos, ex-jogador do Inter), que via muito próximo de mim - ele ia visitar a irmã dele, que morava no meu bairro - foi com ele que eu pensei: "É possível". Na época, ele tinha um Fiat Tipo. Consegui me inspirar com um jogador, mas as outras referências eram os caras envolvidos em coisas ilícitas.

Não havia pessoas que tinham alcançado o sucesso estudando?

Não tinha referência, tipo o cara que estudou, trabalhou, criou a empresa dele. Não tinha isso, entendeu? Digo que é muito mais difícil vencer com a caneta, com o estudo, do que pelos pés, como eu venci. Na totalidade, tem muito mais gente que venceu com a caneta, mas, na periferia, é o cara que chegou pelo pé ou pela voz - hoje os guris conseguem cantar. Na minha época, ou o cara fazia coisa estranha para ganhar dinheiro ou ia para o futebol.

Mesmo sendo um jogador muito bem sucedido, você chegou a viver alguma situação delicada em razão da falta de estudo?

Joguei futebol durante 20 anos, morei em três países diferentes - Portugal, Japão e Alemanha - e em vários momentos me constrangi pela falta de conhecimento. Quantas vezes as pessoas falavam de um assunto e eu não entendia. Coisas básicas que eu não entendia. Qual foi a minha vantagem? Eu não tive estudo, mas a minha esposa (Milene) sempre estudou, fez faculdade. O conhecimento que eu não tinha estava em casa. Chegava para a minha esposa e acabava aprendendo. Hoje eu sou o cara que mais pergunta tudo. Entendi que o que move o mundo são as perguntas. Quanto mais eu digo que não sei, mais oportunidade tenho de aprender.

Você se aposentou e decidiu fazer o EJA (Educação de Jovens e Adultos). O que te levou de volta à escola?

Eu já tinha um negócio de turismo, mas não entendia nada, e isso sendo o dono da empresa. Pensei: "Tenho todo o tempo do mundo, vou tentar estudar". Tem gente que tem medo, porque, para ter conhecimento, tem que passar por constrangimentos, tem que dizer que não sabe. Para mim, não foi nada fácil. Imagina eu, numa sala de aula de Porto Alegre... Eu me sentia herói por estar ali e, ao mesmo tempo, constrangido, porque um colega pedia foto, outro pedia autógrafo, mas eu estava numa sala de aula de 1° ano de Ensino Médio com conhecimentos de um cara de 5ª série do Fundamental. 

Qual foi a coisa que mais gostou de aprender nesse retorno?

Porcentagem. Aprendi a fazer a porcentagem na calculadora, algo muito simples, mas que para mim era muito difícil. Falei para os meus filhos: "Vocês sabem fazer porcentagem na calculadora?" Eles começaram a rir. Comecei a ver que as pessoas que estavam ao meu redor se alegravam de ver que eu tinha voltado a estudar. Não terminei o EJA, mas isso me deu condições de fazer vários cursos, só pela coragem de voltar para a sala de aula. 

A realidade de estudantes de escolas públicas costuma ser marcada por mais dificuldades do que oportunidades. Que mensagem você vai passar para os jovens no Crie o Impossível?

Que é possível. Quem vai falar ano evento, vai falar sobre o que é possível. Vou falar de quem eu sou, como eu fiz e como eu estou hoje. Me considero um ser que viveu do futebol até 2015 e, depois, um ser que teve que se reinventar aos 37 anos, começando do zero, até sem saber o que fazer. Se eu consegui aprender com 37 anos, eles, com o chip novinho, têm condição de muito mais. 

Que curioso: você vai voltar ao Beira-Rio, onde fez sucesso como jogador, para falar sobre educação, que é o que faltou na tua vida.

Que louco, né? Quando me convidaram para o Crie o Impossível e me falaram que seria no Beira-Rio, me passou esse filme todo. Minha vida foi ali, meus primeiros nãos, as reprovações que acabaram me moldando. Foi ali que joguei meu primeiro Gre-Nal, pelo Grêmio, mesmo sendo colorado. E agora, no Beira-Rio, posso falar de educação, para estudantes de escolas pública, que foi o que me faltou na infância e depois consegui recuperar. Tento buscar explicações, não dá nem para acreditar. 

Está nervoso?

Um pouquinho. Qualquer coisa que a gente for fazer, se não tiver friozinho na barriga, é porque está na hora de mudar. Me sinto como se fosse uma final. Mas vai dar tudo certo. 

Crie o Impossível 2022

  • Data: 3/6/2022
  • Horário: 8h às 12h
  • Local: Estádio Beira-Rio, em Porto Alegre
  • Público-alvo: estudantes da rede pública do Ensino Médio
  • Como se inscrever para assistir à transmissão virtual: inscrições disponíveis neste link

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