Longe da sala de aula
Três meses após o começo das aulas, estudantes ainda sofrem com a falta de transporte escolar
Governo do Estado ainda não regulamentou integralmente o serviço em oito municípios
Gilliard Lixinski Gaviolli, 17 anos, é um dos milhares de jovens brasileiros que pretendem entrar em um curso de graduação por meio do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Ainda que sua vontade seja ingressar no Exército, ele não descartava entrar em um curso de graduação neste ano.
O prazo para se inscrever no exame terminou no último dia 21, e o estudante de Santiago, na Região Central, acabou desistindo de ser candidato. Gilliard não se sentiu preparado para fazer as provas, afinal, desde o início do ano letivo, em fevereiro, está impossibilitado de frequentar as aulas, por falta de transporte escolar.
— Se ele fosse se inscrever, ia fazer o que lá? Não tá aprendendo nada. Poderiam cair conteúdos que ele não pôde estudar — afirma a mãe, Márcia Lixinski Gaviolli.
A casa onde eles moram, na localidade de Bom Retiro, fica a 38 quilômetros da Escola Estadual de Ensino Médio Thomás Fortes, onde o jovem frequenta o 3º ano do Ensino Médio. A única maneira de chegar à instituição é por transporte escolar. O serviço, no entanto, está indisponível para ele e outras dezenas de alunos que vivem na zona rural do município.
Santiago e outras 26 cidades gaúchas enfrentaram problemas em disponibilizar ônibus escolares neste ano. Esses municípios não integram o Programa Estadual de Apoio ao Transporte Escolar (Peade), do governo estadual. O programa repassa recursos da Secretaria Estadual de Educação (Seduc) para que cada prefeitura faça a licitação para o serviço.
Conforme a Seduc, para 2022 houve um aumento de 30% no repasse às prefeituras, e o valor total disponibilizado subiu de R$ 160 milhões para R$ 209 milhões. Como o repasse só leva em conta o número de estudantes, sem contabilizar a média de quilômetros rodados, esses municípios consideraram o valor insuficiente para cobrir o deslocamento. Nesse caso, o Piratini assume a responsabilidade de contratar as linhas que irão atender os alunos.
Contudo, mais de três meses após o início do ano letivo, parte desses processos ainda não foram concluídos, e estudantes continuam em casa. Conforme balanço mais recente da Seduc, oito municípios ainda não atendem todas as rotas necessárias: Jari, Santiago, Jaguari, Cacequi e Cachoeira do Sul na Região Central; São Lourenço e Piratini na Região Sul; Santo Ângelo, nas Missões (veja a situação de cada uma abaixo).
Em todos os casos, a secretaria afirma que parte das linhas já foi normalizada, enquanto outras estão em fase de contratação de transporte.
Em meio a esse cenário, Gilliard usa o tempo que deveria estar na escola para ajudar a família na atividade agrícola. Ele também reserva parte do dia para se preparar para concursos militares, mas estuda em casa. Márcia diz que, além do filho, outros 22 colegas estão na mesma situação.
A Seduc tem reforçado que os alunos afetados são atendidos pedagogicamente com aulas remotas ou com a entrega de materiais físicos. Mas, segundo ela, a situação não se confirma na prática:
— A gente foi lá na escola e tentou pegar o material. Simplesmente disseram que não podem mandar e que ele tem que ir lá presencialmente.
A alegação é negada pelo diretor da escola, Aldemir Martins Machado:
— Os materiais estão disponíveis no portal da escola pela internet. Para quem não possui acesso à internet, é possível vir à escola e retirá-los de forma física. Nunca iremos prejudicar a comunidade, isso vai contra o nosso próprio interesse — aponta o diretor.
Mãe vai a pé buscar o material para as filhas
Mesmo quem consegue levar os materiais para casa acaba enfrentando problemas pela ausência de transporte. A cada 15 dias, a dona de casa Juliana Brasil Plaz sai da sua residência, na localidade de Coxilha Negra, em São Lourenço do Sul, e percorre oito quilômetros a pé até a Escola Estadual de Ensino Médio Professor Rodolfo Bersch, onde suas filhas Valentina, 6 anos, e Brenda, 10, estudam.
Somando o trajeto de volta pra casa, são 16 quilômetros e cerca de quatro horas de caminhada. Essa distância é o equivalente a ir do centro de Porto Alegre até o centro de Canoas. Ela coleta todas as atividades que consegue para suprir o período em que as crianças ficam sem aula.
— Não tem como ir toda a semana. É muito longe para ir até lá e buscar — conta Juliana.
Essa é a única forma de garantir que as duas sigam estudando, já que onde moram não há internet e nem linha telefônica.
— Elas precisam de transporte para estudar. Eu não tenho condições de buscar. As duas estão muito atrasadas no conteúdo, pois não conseguem ir à escola e não sabemos quando vão voltar.
Nicolly Cardoso Nachtigal, 8 anos, estuda na mesma escola das filhas de Juliana. Ela conseguiu acompanhar a primeiras aulas do ano letivo presencialmente. No entanto, em março, a família foi morar na localidade de Butiá, a 12 quilômetros da escola.
Sem passar ônibus escolar na região, a mãe de Nicole, a agricultora Letícia Cardoso Nachtigal, chegou a cogitar levar a filha de carro. Mas calculou que, entre idas e vindas, percorreria 48 quilômetros por dia, o que seria inviável para os custos da família. Por isso, precisou comprar internet para que a Nicolly pudesse ter sessões online com a professora, da mesma forma que aconteceu durante a pandemia.
— Foi a forma que conseguimos para ter algum acesso à professora. Até então, a gente não tinha mais acesso nenhum com a escola nem com material. A gente estava totalmente isolado, aqui também não pega sinal de telefone. Estava bem complicado — conta Letícia.
Nicole tem recebido ajuda da mãe para se organizar nas tarefas escolares. O auxílio, no entanto, não é o suficiente para que a menina consiga se integrar totalmente ao que está sendo passado em aula.
— Claro que não é não é o ideal. Mas alguma coisa eu tenho pedido para a professora. Eu vou tentando acompanhar e tentando fazer alguma coisa com ela em casa, mas claro que a gente não tem a mesma facilidade de ensinar essa coisa toda, né?
Nas Missões
No caso da também agricultora Juliana Zimpel, moradora de Santo Ângelo, são três filhos que permanecem em casa por não ter como se deslocar até a sala de aula. Júlia, 15 anos, está no primeiro ano do Ensino Médio, Guilherme cursa o Ensino Fundamental, e Isabella, 5, está na Educação Infantil. São 10 quilômetros da localidade onde vivem, em Ressaca da Buriti, até a Escola Estadual de Ensino Médio Buriti.
Tudo que é possível recuperar de conteúdo perdido é recebido por WhatsApp.
— Eles estão fazendo o que conseguem fazer porque a gente nem sempre acompanha tudo que vem. A gente não pode dar o mesmo apoio, aquela explicação que o professor dá. Eles tentam se adaptar, pegam mais trabalhos para conseguir mais notas, mas aprender mesmo é difícil — relata.
Sem contar o período de pandemia, quando todos estudantes ficaram em casa, ela conta que é a primeira vez que vê seus filhos longe das salas de aula por tanto tempo.
— Isso nunca tinha acontecido. No caso da Júlia, que depende do transporte escolar há 13 anos, é a primeira vez. Além disso, ela está pegando o início do novo Ensino Médio, que tem um método diferenciado, mas está perdendo tudo isso — acrescenta a mãe.
Impacto na saúde mental
Além de comprometer o aprendizado dos alunos, a ausência nas salas de aula pode afetar diretamente a saúde mental dos estudantes das mais diversas idades. Para a psicóloga Patrícia Fagundes, especialista em problemas do desenvolvimento na infância e adolescência, as falhas estruturais e logísticas são em parte fruto da desvalorização da função social que a escola proporciona. Dessa forma, as relações com alunos, professores e o espaço de aula são enfraquecidas.
— Nós precisamos ver a escola não só enquanto espaço de transmissão de conteúdo e conhecimento, mas enquanto um terreno fértil para socialização, pois isso incide nos processos de ensino-aprendizagem e na saúde mental das comunidades escolares. Por isso, resgatar a função social da escola é fundamental. O aluno pode ter acesso ao material, mas ele precisa ainda das relações, para fortalecer os diversos vínculos de afeto que servem como sustentação da aprendizagem — analisa a psicóloga.
Ainda segundo Patrícia, a falta de transporte escolar que tem agravado a vida de crianças e adolescentes já impactados pela pandemia é um dos diversos aspectos explicados pela forma como as autoridades da educação lidaram com a retomada ao ambiente escolar:
— Muitas perguntas foram feitas desde o início da pandemia sobre quando os alunos retornariam às aulas e quando eles poderiam voltar. Mas pouco se falou sobre como seria esse retorno, tanto em condições de acesso quanto de infraestrutura. E agora estamos vendo problemas como esse.
Sem prazo
A Seduc não chega a informar um prazo concreto para que a situação seja totalmente normalizada nas cidades que ainda estão sem transporte escolar. Afirmou, em nota, que “trabalha para que os serviços nos 8 municípios restantes sejam restabelecidos com a maior brevidade”.
Devido à demora para resolver o impasse, parte dessas prefeituras buscou o Ministério Público (MP) que, por sua vez, ingressou com ações na Justiça solicitando o fornecimento imediato de transporte para as áreas desassistidas. Segundo a instituição, o governo gaúcho é alvo de, ao menos, nove ações judiciais.
Por meio da assessoria de imprensa, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) informou o registro de sete ações com decisões proferidas. Dessas, conforme o órgão, três já foram cumpridas integralmente em São Gabriel, Santa Maria e Unistalda. As demais determinações tiveram apenas o cumprimento parcial, como é o caso de Santiago, ou o não cumprimento em Santo Ângelo, São Lourenço do Sul e Jaguari. Nesse caso, a PGE justifica que cada município contempla diversas rotas a serem percorridas, que geram diferentes contratos, razão pela qual nem todos os contratos tiveram início de execução. Por fim, ressalta que estão sendo adotadas com prioridade as providências para o cumprimento.
Confira a situação das cidades
Das 27 cidades que não integram o Peade, em oito ainda há falta de transporte escolar. Nesse caso, o transporte é dividido por lote, que considera a rota e a região a ser percorrida. As coordenadorias de educação são responsáveis pela organização dessas rotas:
- Jari: possui dois lotes, ambos seguem em fase de contratação
- Piratini: tem 16 lotes em funcionamento e três em fase final de contratação
- Cachoeira do Sul: 24 lotes já operam. Dois estão em fase de finalização de contrato
- São Lourenço do Sul: possui 22 lotes: 11 estão em funcionamento e outros 11 com a contratação em andamento
- Cacequi: possui 10 lotes, sendo 5 já em funcionamento, 4 para assinatura de ordem de início e 1 em fase de contratação
- Santiago: seis lotes já estão funcionando e um está em fase de contratação
- Jaguari: De um total de 18 lotes, 16 estão em funcionamento e dois em fase de contratação
- Santo Ângelo: tem 14 lotes em funcionamento e cinco estão em fase de contratação
*Dados fornecidos pela Seduc