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Mais de 800 habitações do Programa de Arrendamento Residencial estão vazias no RS

Estado lidera o ranking de lares sem moradores quando comparado ao resto do país. Dados foram obtidos pelo através da Lei de Acesso à Informação

22/04/2023 - 05h00min


Alberi Neto
Alberi Neto
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Mateus Bruxel / Agencia RBS
Condomínios Parque do Sol I e II, no bairro Santa Fé, em Gravataí, têm 94 apartamentos vazios

– Tem apartamento aí que ficou até com os móveis do antigo morador dentro – conta um dos funcionários dos residenciais Parque do Sol I e II, no bairro Santa Fé, em Gravataí, que prefere não se identificar.

Ele se refere a algum dos 94 apartamentos vazios nos dois condomínios – cerca de 40% dos 240 que integram o local. Em todo Rio Grande do Sul, Gravataí é a cidade que mais tem unidades habitacionais do antigo Programa de Arrendamento Residencial (PAR) retomadas pela Caixa Econômica Federal (CEF) e atualmente sem uso, são 110. O PAR foi um programa de habitação de interesse social que reformou e construiu imóveis para atendimento à população de baixa renda, parecido, mas antecessor de programas como Minha Casa Minha Vida ou Casa Verde e Amarela. Os contratos do PAR foram assinados, concentradamente, no período de 2000 a 2010, e o programa entregou, aproximadamente, 262 mil unidades habitacionais em todo país.

Mas, não é só em Gravataí que há apartamentos ociosos do antigo PAR. O Rio Grande do Sul, aliás, também lidera esse ranking quando comparado ao resto do país. E o Diário Gaúcho obteve, através da Lei de Acesso à Informação (LAI), a relação de todas as unidades habitacionais que estão vazias no país. São 1.870 lares vazios, que estão avaliados em mais de R$ 220 milhões. 

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As residências são de propriedade da Caixa e construídas através do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), que geria o PAR. O Rio Grande do Sul tem 821 destes apartamentos ou casas, que valem, segundo avaliação informada pela Caixa, cerca de R$ 92 milhões. É mais que o número de São Paulo (386) e Rio de Janeiro (333) juntos, que somam 719 unidades desocupadas e ocupam, respectivamente, o segundo e terceiro lugar deste infeliz ranking.

Justificativas

Mas, num país onde o direito à moradia, apesar de constitucional, não é garantido, porque tantos apartamentos pertencentes a um banco público estão vazios? Não são locais em obra ou que tiveram a construção parada. São apartamentos ou casas em condomínios e loteamentos prontos e com outros moradores. São locais que foram retomados pela Caixa em razão de alguma irregularidade de quem ali morava, seja o atraso nas prestações do PAR, a sublocação ou até venda indevida, entre outras razões pelas quais o banco pode retomar os espaços. Mas, depois de retomados, estes lares deviam ter novos moradores, o que não ocorre. Ao menos, não com a frequência e público que poderiam ser contemplados.

Na resposta do pedido via LAI, a Caixa justifica que "ao serem retomados, conforme o regulamento do FAR", as unidades "não podem ser objeto de novo arrendamento, devendo ser alienados a preço de mercado". E que os apartamentos ou casas "estão disponíveis para venda, a preço de mercado, mediante concorrência pública ou venda direta FAR", disponíveis no site da Caixa.

Entretanto, a lei que criou o PAR, de fevereiro de 2001, aponta que é " facultada a alienação" dos locais à Caixa. Ou seja, a alienação não é uma obrigação. O banco pode deixar os apartamentos à disposição para outros interessados através de leilões ou outras formas de aquisição, mas também pode pedir indicações para prefeituras de novos beneficiários.

E foi o que a Caixa fez, inclusive. Mais de uma prefeitura de Região Metropolitana informou ao DG ter sido procurada pela Caixa nos últimos anos com a oferta de residências via PAR, onde a administração da cidade só precisaria indicar nomes de pessoas precisando de moradia que se encaixassem na faixa de renda do programa. Entretanto, depois de um certo ponto da negociação, o banco deixou de responder.

– As famílias criaram muita expectativa com a oferta e, depois, acabamos tendo de lidar com a frustração deles. Como se fosse culpa da prefeitura, quando, na verdade, a Caixa simplesmente parou de nos responder – pontua a secretária de Habitação de Gravataí, Luciane Machado.

Há cerca de três anos e meio, Luciane diz que a Caixa procurou a prefeitura de Gravataí para dar destinação as 110 unidades habitacionais do PAR que estão vazias na cidade. A prefeitura selecionou famílias, escaneou documentos e os encaminhou a empresa que é contratada pela Caixa para administrar estas residências (outro problema apontado por moradores mencionado nesta reportagem). Chegou a ser feita uma reunião entre representantes da Caixa e as famílias. Desde então, o negócio estagnou.

– Há alguns meses, um representante da Caixa tinha agenda aqui na prefeitura. Aproveitei para questioná-lo sobre os apartamentos que tinham sido oferecidos. Essa pessoa afirmou que a Caixa tinha feito uma releitura da legislação, e que seria mais fácil para o banco deixar os imóveis disponíveis para venda por leilão ou compra direta – recorda Luciane.

Unidades vazias são risco para outros moradores

No bairro Tijuca, em Alvorada, os moradores do residencial Passo da Figueira enfrentaram por anos um drama comum em unidades vazias de condomínios populares: as invasões. O prédio, erguido pelo PAR há 15 anos, tem atualmente 38 apartamentos da Caixa vazios, entre os 360 que compõe a estrutura. Em toda cidade de Alvorada, são 54 apartamentos desocupados. Há cerca de cinco anos, após disputas com a Caixa, os próprios moradores assumiram a gestão condominial, contratando uma empresa e elegendo uma síndica, moradora do Passo da Figueira.

– Quando assumi, tínhamos muitas invasões e a Caixa nunca atendia pedidos para retirar essas pessoas. Individualizamos o fornecimento de água e exigimos que a CEEE só ligue a luz com alguns documentos específicos sendo apresentados. Assim, conseguimos fazer com essas pessoas saíssem – cita a síndica, Márcia Silva, 60 anos.

Segundo ela, algumas pessoas chegaram a viver quase 10 anos em uma unidade invadida. Além disso, os invasores pouco (ou em nada) respeitavam as regras de convívio do condomínio. Desde então, tentativas pontuais de entrada são coibidas pelos próprios moradores, que acabam tendo de gastar dinheiro do condomínio para proteger os apartamentos da Caixa.

– Já colocamos grade em pelo menos seis apartamentos vazios – enumera Márcia.

A síndica, inclusive, é vizinha de umas dessas unidades vazias. Como já foi arrombado, o local recebeu chaves novas, que segundo Márcia, estão disponíveis à Caixa no local, mas nunca foram buscadas.

A síndica abriu o local para a reportagem do Diário Gaúcho. Segundo ela, este apartamento está vazio há nove anos. Há quase uma década, Márcia é vizinha de ninguém, de um desperdício de dinheiro público. Tomado por umidade e teias de aranha, o apartamento de dois quartos sequer chegou a receber revestimento no chão, segue com o mesmo contra piso da inauguração. Um colchão velho num dos quartos indica que alguém já tentou se estabelecer ilegalmente ali, sem sucesso.

– A invasão é assim, trazem uma coisa ou outra, quando vemos, a mudança inteira está no local. Mas, sem a água e a luz, não conseguem permanecer – explica a síndica do Passo da Figueira.

Limpas as teias de aranha sob os ombros e expelidos os espirros causados pela poeira, a reportagem deixa o apartamento, que é novamente chaveado por Márcia, a espera de que algum dia receba moradores de verdade.

Locais desocupados geram despesa milionária 

As chaves da residência que a síndica pontuou estarem disponíveis, provavelmente não serão retiradas pela Caixa. Esse seria um papel das empresas contratadas para gestão administrativa dos locais. Além das taxas de condomínio, o banco público também contrata empresas para gerir estes locais por meio de licitação.

Conforme a Caixa, na resposta via LAI, estes entes privados "prestam serviços de atendimento aos arrendatários e gestão dos contratos de arrendamento", e dentre as atribuições contratuais, "compete à administradora realizar vistoria no imóvel quando da retomada e periodicamente, sempre que solicitado pela Caixa". Entretanto, nos locais visitados, moradores, lideranças e até administradores públicos citam que o aparecimento destas empresas é raríssimo, restringindo-se as cobranças do pagamento das parcelas do PAR, que podem se estender por até 15 anos.

Por esse serviço, o banco remunera um valor individual, mensal, que varia de acordo com cada contrato. No pedido de LAI, a Caixa diz que no Rio Grande do Sul, todos os 870 apartamentos vazios são geridos pela mesma empresa, a Inovare Negócios Imobiliários. Mas, pelos números do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) fornecidos pelo banco via LAI, são duas empresas. A Inovare em 781 unidades e a ALL Administradora em outras 40 unidades.

O valor pago, este sim, é o mesmo: R$ 6,72 por mês para cada apartamento. Mas, vale ressaltar que essa quantia não é paga apenas para apartamentos vazios, mas para todos do PAR, já que as empresas, em tese, devem atender todos os moradores. Sendo assim, só as unidades vazias do Rio Grande do Sul custam R$ 5.517,12 por mês ou R$ 66.205,44 por ano. Apesar de significativo, o valor é necessário para administrar os locais. O que não seria necessário é a despesa com taxas de condomínio, se estes espaços tivessem moradores. Essa, sim, é uma despesa milionária.

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Mesmo disponíveis para a venda direta ou por leilões, como pontua a Caixa, muitas unidades habitacionais estão vazias há anos. E isso é comprovado pelos custos de taxas de condomínio que a Caixa tem com estes espaços. Só em 2022, foram R$ 5.587.341,71 pagos em todo país. E, desde 2011, conforme a Caixa disponibilizou via LAI, foram gastos R$ 47.363.554,28, número que deve ultrapassar os R$ 50 milhões até o fim de 2023. O PAR existe desde 2001, conforme a lei que o criou. Apesar disso, a Caixa afirma ter dados com custos de condomínio somente desde 2011.

Esses valores ainda consideram só o que foi pago pelo banco, já que há inúmeras ações judiciais de administradores pelo país que cobram da Caixa valores de condomínios devidos.

– O maior devedor de condomínio que tenho é a Caixa. Na Justiça, já conseguimos reaver R$ 200 mil em valores atrasados, mas ainda há mais R$ 100 mil em disputa – cita Andrew Pinto, proprietário da empresa contratada pelos moradores da Passo da Figueira, em Alvorada.

Andrew, aliás, tentou negociar com a Caixa há pouco mais de um ano atrás que os 38 apartamentos vazios no condomínio Passo da Figueira fossem destinados para policiais militares. Aqueles vindos do Interior para atuar em Alvorada e que se enquadrassem na faixa de renda do PAR. A ideia era facilitar o trabalho do banco público, com famílias de renda mais estável e com garantia de longa permanência nos locais.

– Tanto a Caixa, quanto a prefeitura e a própria Brigada Militar (BM) aqui de Alvorada aprovaram a ideia. Mas, depois de um tempo, a Caixa simplesmente parou de nos retornar sobre a negociação – recorda o administrador.

Número pequeno dentro do todo, diz Caixa

Em nota enviada pela sua assessoria de imprensa, a Caixa afirmou que "os contratos do PAR foram assinados, concentradamente, no período de 2000 a 2010, e o programa entregou, aproximadamente, 262 mil unidades habitacionais" e que, "atualmente, há 1.870 unidades habitacionais ociosas, ou seja, apenas 0,71% do total de unidades entregues no âmbito do programa".

Ainda assim, o banco reconheceu que "enquanto agente executor do PAR e, visando reocupar unidades habitacionais ociosas, acionou as prefeituras municipais do estado do Rio Grande do Sul para levantamento de potencial interesse de ocupação desses imóveis". Sobre a demora em responder aos municípios, o banco público informou que, a partir da indicação das prefeituras, "os processos têm seguido as etapas de avaliação, conforme previsto no regulamento vigente do FAR".

Venda

A Caixa reforça que a destinação dos imóveis oriundos do PAR não arrendados, não alienados ou reintegrados ao patrimônio do FAR já ocorre, sendo os recursos reincorporados ao FAR. A venda é realizada por meio do site do banco.

Em relação as taxas pagas, a Caixa diz que "se trata de informação histórica, ou seja, os valores apresentados representam os desembolsos realizados em unidades que em algum momento ficaram ociosas". E que "as obrigações custeadas pelo Fundo, inclusive taxas condominiais, relativamente aos imóveis do PAR, estão em estrito cumprimento do estabelecido na legislação do programa". E, por isso, "a alienação dos imóveis mostra-se como uma das alternativas para redução dos dispêndios do FAR".

Nova esperança de destinação dos imóveis 

Uma esperança de reocupação dos apartamentos vazios do PAR surgiu em fevereiro, quando o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) relançou o Minha Casa Minha Vida (MCMV) através de Medida Provisória (MP) – ou seja, com validade de 60 dias, podendo ser prorrogado automaticamente por igual período caso não tenha sua votação concluída nas duas Casas do Congresso Nacional, a Câmara dos Deputados e o Senado.

No texto, são citados os imóveis construídos com verbas FAR, fundo usado para residências do antigo PAR e também para outros programas de moradia, como o Casa Verde e Amarela e o Minha Casa Minha Vida. O texto altera a lei que criou o PAR, de 2001, citando que as residências construídas com essas verbas devem ser destinadas com prioridade para "programas habitacionais de interesse social" e "pessoas físicas que constituam o público-alvo dos programas habitacionais federais".

Procurado pela reportagem, o Ministério das Cidades, afirmou que a venda das unidades desocupadas do PAR no atual modelo é uma política da Caixa. E que, por isso, caberia a Caixa a decisão sobre a "gestão da política de venda das unidades habitacionais desocupadas".

Regulamentações

A Caixa, em nota enviada ao Diário Gaúcho, afirmou que em relação "a possível destinação dos imóveis para beneficiários do programa Minha Casa, Minha Vida, no momento não há regulamentação que viabilize essa destinação de um programa para o outro". O banco desta que "o público-alvo dos programas (MCMV e PAR) são distintos e as normas deles são de competência do Ministério das Cidades". Por isso, a Caixa diz que aguarda "publicação da regulamentação do Ministério das Cidades quanto à destinação dos imóveis para operacionalização do Minha Casa, Minha Vida nas regras postas". O Ministério das Cidades já informou ao DG que está elaborando propostas para convalidar seleções de programas antigos no novo MCMV.

Sobre a mudança na lei que criou o PAR gerada por esta MP do novo Minha Casa Minha Vida, o banco público afirma que também aguarda publicação, por parte do Ministério das Cidades, "da regulamentação prevista na MP, uma vez que a competência quanto à definição da política habitacional de interesse social é conferida ao ministério".

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