PORTO ALEGRE
População em situação de rua participa de ações de promoção à saúde mental
Serviços de atendimento para pessoas em situação de vulnerabilidade buscam ampliar o diálogo sobre emoções, projetos de vida e prevenção ao suicídio.
Os traços firmes colorem de rosa o grande rosto de uma figura que medita suspensa no ar. Apesar da obra estar naquele instante sob o domínio de Diorgenes dos Santos, 29 anos, o trabalho não é de autoria dele. Não só dele, melhor dizendo.
O quadro começou a ser construído em outra ação do Consultório na Rua, que leva serviços de saúde e assistência social até pessoas em extrema vulnerabilidade social. Nesta segunda-feira (4), a ação ocorreu no Centro POP I, na Avenida João Pessoa, em Porto Alegre. Este é o segundo encontro do Consultório na Rua com foco em saúde mental e prevenção ao suicídio, que foi tema do mês passado – o já tradicional Setembro Amarelo. Para Diorgenes, a pintura é uma oportunidade de retomar sua afinidade com o artesanato. Morador do balneário Arroio do Silva, em Santa Catarina, ele deixou a cidade para tentar emprego em Porto Alegre.
– Acabei não conseguindo trabalho aqui também. O maior desafio nas ruas é fugir das drogas, muitas pessoas oferecem. Consegui me manter sempre distante com muito esforço – relata Diorgenes, que pretende morar em São Paulo.
Leia mais
Confira os tratamentos em saúde mental oferecidos pela rede pública
Psicóloga oferece atendimento a baixo custo em comunidade na zona norte da Capital
Depois das questões econômicas, saúde mental foi aspecto mais impactado pela pandemia
E os medos que a rua pode trazer, além de outros riscos, são trazidos para as ações realizadas na Capital. A ideia é que por meio dos chamados disparos lúdicos, os educadores sociais e agentes de saúde consigam abrir espaço para conversar com as pessoas em situação de vulnerabilidade sobre temas como a saúde mental, projetos de vida, autonomia, reinserção na sociedade, entre outros assuntos.
Não muito distante do quadro que Diorgenes pintava, Raul Rodrigues Buiz, 32 anos, colava sua “âncora”. Um incentivo usado pelos educadores para manifestação de pontos importantes aos frequentadores dos locais. Raul escreveu “paz”:
– O espaço que temos aqui para conversar é importante. É bom saber que tem alguém disposto a ouvir nossos relatos.
Para o pintor predial desempregado Vanderli Roca Paraná, 41 anos, a âncora tem significado ainda mais especial. As palavras “casa” e “família”, escritas de próprio punho, são resultado de um esforço de dois anos para aprender a ler e escrever. Munido de gibis da Turma da Mônica e de uma Bíblia Sagrada, ele celebra a conquista, que teve apoio da coordenadora e psicóloga do Centro Pop I, Laura Baptista Lewgoy. Há 11 anos morando na rua, Paraná admite que é um caminho difícil de ser revertido.
Laura cita que o trabalho integrado tem resultados importantes, principalmente, no objetivo de dar autonomia e reinserir pessoas em situação de rua na sociedade.
É o caso de Jaqueline de Oliveira Lima, 53 anos. Acompanhada no local também pelo Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS), ela conseguiu obter o Auxílio Moradia da prefeitura de Porto Alegre e voltou a viver sob um teto, na Vila Cruzeiro, Zona Sul.
– Na pandemia, ampliamos nossos atendimentos de 60 para cem por dia – pontua Laura.
A próxima edição do Consultório na Rua com integração dos serviços da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) é no dia 15, no Centro POP II, na Rua Gaspar Martins, bairro Floresta.
Leia mais
Jovens aprendizes produzem casinhas para cães de moradores de rua da Capital
Projeto da Capital gera renda para pessoas em situação de rua
A coordenadora do Centro POP I ressalta o trabalho em equipe para reinserção social de quem está na rua. Como no caso de André Spencer dos Santos, 32 anos. Morador de Eldorado do Sul, ele veio para Porto Alegre em busca de emprego, depois que a ocupação como pintor foi perdida no início da pandemia. Sem conseguir trabalho, passou alguns dias na rodoviária da Capital, até conseguir vaga em albergues.
– Nunca tinha ficado na rua, foi bastante assustador – relata André, que desde junho conquistou o Auxílio Moradia e um lugar para morar, no Centro Histórico.
No Centro POP I, uma parede toda destaca um painel construído por André. Segundo o artista, a obra une pensamentos próprios, formas de protesto e ressalta a necessidade de serviços integrados como política de assistência social.
– Para alguém sair da rua, não depende de uma coisa só. Muitos desenvolvem problemas de ansiedade, depressão. Esse cuidado com a saúde mental é uma parte muito importante do processo de retomada de consciência – opina André, que também expõe as inspirações artísticas em uma revista feita a mão mensalmente – arte conhecida como zine.
Educador social do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), Fernando Knup cita que, além do trabalho com pintura e revistas artesanais, os frequentadores de outro ponto da rede, o Centro Ilê Mulher, criaram até uma música com alusão ao Setembro Amarelo. Psicólogo do Consultório na Rua, Lucas Prado conta que as ações integradas nos centros POP têm facilitado o diálogo com as pessoas em situação de vulnerabilidade social.
– Eles se sentem muito mais à vontade para conversar, e nós também. É mais fácil dialogar num espaço onde as pessoas se sentem realmente acolhidas.