Tempo perdido
Alunos de escola da Restinga ainda não tiveram aulas de português e matemática neste ano
Na base do improviso, mestres de outras disciplinas tentam ensinar os conteúdos para os quais está faltando professor. Como nem sempre conseguem, muitas vezes, os alunos acabam sendo liberados mais cedo
Aluna do 6º ano da Escola Municipal de Ensino Fundamental Vereador Carlos Pessoa de Brum, de Porto Alegre, Raíssa Frida Ignácio, 13 anos, ficou constrangida ao não saber fazer um cálculo de raiz quadrada. Foi durante um teste de conhecimentos gerais que fez para ingressar num cursinho de informática e inglês.
— Me deu vergonha de dizer que eu não tinha professor de matemática na escola e não sabia fazer esse cálculo — admite.
Extrair a raiz quadrada de um número é um dos conteúdos que compõem o currículo do 6° ano. Raíssa não sabe fazer o cálculo, não por torcer o nariz para a disciplina, como muitos adolescentes, mas por não ter professor que a ensine. Na escola localizada no bairro Restinga, extremo sul da Capital, são 60 alunos do 6º ano sem aulas de matemática desde o começo do ano. Não bastasse isso, outros 180 alunos dos 7º e 8º anos vão às aulas há cinco meses sem conhecerem o professor de português.
Irrecuperável
A sensação dos alunos ouvidos pela reportagem é de que o tempo perdido até aqui é irrecuperável. E, provavelmente, seja mesmo. Se os professores chegassem hoje, os alunos precisariam ter 90 horas de aula de matemática, ou, 24 dias de aula somente desta disciplina. No caso do português, seriam necessários 19 dias de aulas dedicados especialmente à disciplina, ou 72 horas de aula.
— Todo esse período perdido não tem como recuperar com qualidade. Se a escola não tem professor, não tem conhecimento. Isso é muito grave. O professor do ano que vem terá que dar aula de dois conteúdos juntos. Terá que condensar tudo para tentar recuperar de alguma forma — avalia a vice-diretora Adriana Braga.
A Escola Carlos Pessoa de Brum tem 1.350 alunos e chegou ao 111° dia de aula, segundo a direção, com falta de 19 professores na grade curricular. Além de português e matemática, faltam professores das séries iniciais (do 1º ao 5º ano), de filosofia, geografia, artes e língua estrangeira, além de supervisor, coordenadores de turno e professores para o laboratório de aprendizagem.
Cadernos em branco, alunos "pouco priorizados"
No caso das aulas de português, os quatro períodos semanais são preenchidos no improviso: a professora de ciências tenta trabalhar interpretação de textos com conteúdo de sua disciplina, a de história sugere produções de texto que envolvam história ou a de artes tenta fazer uma aula "adaptada". Quando nenhuma delas consegue atender a turma, os alunos são liberados mais cedo.
Nos períodos de aulas de matemática, nem o improviso é possível. As professoras de história e ciências costumam assumir a turmas pois têm carga horária sobrando. Mas, naturalmente, dão conteúdos das suas respectivas disciplinas e não ensinam os alunos a resolver expressões numéricas ou operações com frações, já que não estão habilitadas para isso. Novamente, se nenhuma das professoras pode atendê-los, o que é comum, os alunos são liberados mais cedo.
Mikaella Vitória da Rocha, 11 anos, tinha reservado as primeiras páginas do caderno de 200 folhas para matemática. Até ontem, as folhas estavam todas em branco:
— Matemática é necessária para tudo, é a disciplina principal. Espero que, até o fim do ano, tenhamos uma professora — diz ela, ainda confiante.
Perda do vocabulário
Para os alunos da turma do 7° ano, que estão sem português, o prejuízo por não ter a disciplina se reflete também nas outras matérias:
— Não conseguimos escrever direito uma redação. Isso influencia todas as outras disciplinas, para tudo a gente precisa saber escrever, português é a disciplina mais importante e nós não temos — argumenta Willyan da Silva Fernandes, 13 anos.
Natielly Pacheco da Silva, 13 anos, sente a perda do próprio vocabulário e admite não fazer ideia do que trata a disciplina de filosofia — outra matéria que ainda não teve nenhuma aula no ano:
— Sem aulas de português é muito difícil escrever, as palavras não vêm a nossa cabeça.
Na turma, os estudantes dizem se sentir "pouco priorizados", especialmente por estarem na periferia.
— Acordo todos os dias às 7h, venho para a escola e não tenho professor. Ficamos aqui em período reduzido. Isso desanima — admite Kamilly Vitória Rosa Campos, 14 anos.
Protesto e prejuízo nos laboratórios
A indignação com a falta de retorno da Secretaria Municipal de Educação (Smed) com os insistentes pedidos de ajuda fez a direção da escola espalhar pelos prédios cartazes em forma de corpo humano. Eles representam os "professores fantasmas" da escola.
Os alunos das séries iniciais, do 1º ao 5° ano, para os quais faltam cinco professores, só não estão sem aulas porque os docentes do laboratório de aprendizagem foram deslocados para atender estas turmas:
— No começo do ano, depois de insistir muito e colocar um professor substituto diferente todos os dias, nos convencemos de que não viria mais ninguém e decidimos fechar o laboratório pela manhã para atender essas crianças. Elas precisam ter o mesmo professor o ano todo para criar uma identificação com ele — explica o diretor.
O laboratório de aprendizagem funciona como reforço no contraturno. Ele é especialmente importante em escolas localizadas na periferia, onde estudantes enfrentam situações como drogadição, desnutrição e maternidade precoce, barreiras que levam o aluno a ter mais dificuldade em sala de aula. Até o começo do ano, a escola tinha três laboratórios funcionando pela manhã e três à tarde. Com o remanejamento, só conseguiu manter os da tarde.
— Isso é o reforço que eles têm. É individualizado, com as especificidades nas quais o aluno precisa melhorar. O professor faz um diagnóstico da defasagem daquela criança e trabalha naquilo para sanar suas dúvidas — afirma a vice-diretora Adriana Braga.
Pelo menos 20 e-mails de aviso
Não foi por falta de avisos da direção da escola que a Smed deixou de mandar mais professores para a Carlos Pessoa de Brum. Do começo do ano letivo, em 14 de março, até o final de abril, o diretor Felipe Dornelles ligou diariamente para a Smed para comunicar o problema e pedir soluções. Entre 29 de dezembro de 2017 e 3 de julho de 2018, enviou pelo menos 20 e-mails para a Smed, alguns deles também endereçados ao secretário Adriano Naves de Brito, avisando que precisava de mais profissionais na escola.
Em uma das mensagens, enviada em 22 de março, Felipe solicita uma reunião com a diretoria de recursos humanos da Smed: "Gostaria de solicitar um horário para atendimento com esta diretoria para tratar de assuntos urgentes para nossa escola. Venho tentando contato telefônico mas nunca encontro disponibilidade, no entanto a escola está passando por um momento muito difícil com a falta de alguns setores imprescindíveis para um bom atendimento."
— É triste saber que não tem previsão de melhora. Os pais nos questionam, mas nem sabemos mais o que responder a eles — afirma Felipe.
Secretário de Educação contesta números
O secretário de Educação de Porto Alegre, Adriano Naves de Brito, contesta o número de professores em falta informados pela escola. De acordo com o RH da Smed, a necessidade da escola é de 70 horas, "algo como dois a três professores para sala de aula". Ele reforça que a prioridade de atendimento é sempre a sala de aula.
Em um ofício enviado em 2 de abril para a escola, a orientação era de que, caso houvesse falta de professores em sala de aula, a ocupação de demais espaços, como coordenação de turno e laboratório de aprendizagem, é secundária.
— Estes espaços não correspondem a nossa prioridade. Estamos resolvendo a distribuição de recursos humanos, racionalizando esse uso e fazendo ele melhor. Não temos tanta falta de professores, isso não corresponde à realidade. Se comparar o começo do ano passado com o deste ano, o problema está reduzido em um terço. Quando assumimos, 50% dos recursos humanos da secretaria estavam ligados a atividades que não eram de exercício da docência — argumenta.
Ciências X matemática
Sobre a falta de um docente de matemática, diz que professores de ciências estão habilitados a dar aula de matemática. Porém, a professora de ciências do 6º ano da Carlos Pessoa de Brum, Isabel Severo, afirma que tem licenciatura plena em Ciências Biológicas e que não possui habilitação ou qualquer treinamento para dar matemática.
A respeito da contratação de novos servidores, um concurso com inscrições já encerradas para séries iniciais ocorrerá em novembro. Outro, para séries finais, está em fase de conclusão e deve ser lançado até o final do ano. Para ambos, o secretário não divulga o número de vagas, pois elas variam de acordo com a demanda de cada momento.