Doação de sangue
Estado interrompe circulação de unidade móvel para coleta de sangue no RS
Governo diz que custo-benefício das coletas na unidade móvel não justificam mais a manutenção do serviço. Especialista e membros de associações de doadores discordam da decisão
Quem costuma doar sangue em cidades onde não há banco de armazenamento vai ter um caminho mais difícil neste ano. Isso porque o governo estadual interrompeu a circulação da unidade móvel do Hemocentro do Rio Grande do Sul (Hemorgs). O ônibus costumava circular por municípios do Interior e Região Metropolitana, fazendo visitas em datas marcadas em conjunto com entidades locais.
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A Secretaria Estadual da Saúde (SES-RS) concluiu que "o custo-benefício das coletas realizadas na unidade móvel não justifica a manutenção da atividade", conforme nota enviada à reportagem. Assim, de agora em diante, a pasta decidiu que "só serão realizadas coletas externas quando os estoques de sangue estiverem baixos", conforme o comunicado.
A justificativa da SES-RS para limitar a circulação do ônibus é que "quando a coleta é realizada na sede do Hemorgs, uma bolsa de sangue pode produzir até quatro hemocomponentes". Já quando a coleta ocorre na unidade móvel, a secretaria diz que, "em função das condições de acondicionamento e transporte, produz-se apenas um hemocomponente".
Os hemocomponentes são os quatro produtos gerados a partir de uma bolsa de sangue. O principal é o concentrado de hemácias, mais comumente utilizado em transfusões. Depois, vem o concentrado de plaquetas, que pode ser usado em tratamentos de leucemia, por exemplo. Os últimos dois produtos são o plasma fresco e o crioprecipitado, utilizados em casos onde o paciente tem distúrbios de coagulação, por exemplo.
O Diário questionou a SES-RS sobre a quantidade de sangue que a unidade móvel coletou no ano passado e quanto isso representou no total enviado ao Hemorgs. Contudo, a secretaria não informou os dados.
"É grave"
Para quem entende do assunto, as justificativas do Estado não convencem. O vice-presidente da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH), Dr. José Francisco Comenalli Marques Júnior, diz que o sangue coletado por unidades móveis pode ser utilizado para produção dos quatro hemocomponentes entre seis e oito horas após a doação.
— Há tempo suficiente para coletar e deslocar até o banco de sangue mais próximo para processar os hemocomponentes — aponta o hematologista e hemoterapeuta que, além do cargo na ABHH, trabalha no hemocentro da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em São Paulo.
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Conforme José, a Organização Mundial da Saúde (OMS) orienta que entre 3% e 3,5% da população de um país doe sangue. No Brasil, o índice é de 1,9%. Sendo que, segundo a associação, entre 30% e 40% desse índice de doadores é conquistado fora dos hemocentros.
— Essa retirada da unidade móvel é grave. Sem as coletas externas, o índice de doares no Brasil, por exemplo, cairia para cerca de 1,2%. Um cenário mais trágico do que esse que já temos atualmente — projeta o vice-presidente da ABHH.
Na visão do especialista, a ótica adotada pelo Estado, de querer que o doador se dirija até os bancos de sangue — que, no Rio Grande do Sul, estão distantes de algumas cidades onde a unidade móvel costumava passar — é uma inversão de valores:
— Querer que o doador se desloque de graça até um banco de sangue para praticar um ato altruísta? O Estado tem é que buscar soluções, ir atrás do doador, não ficar esperando pela população. Isso é uma perda para toda a sociedade, pessoas morrem diariamente nas emergências do país por falta de sangue nos estoques.
"Mudança pode afetar todo o Estado"
A hematologista Kátia Zanotelli Fassina, responsável pelo banco de sangue do Hospital Conceição (HC), na Capital, acredita que a retirada da unidade móvel prejudicará os estoques dos bancos do Estado, principalmente, em períodos de maior demanda, como datas festivas, quando ocorrem mais acidentes, por exemplo. Mesmo que o banco de sangue do HC não receba bolsas do Hemorgs, Kátia explica que há um acordo de cooperação entre as entidades do RS.
— A unidade móvel coleta no Interior, trata no Hemorgs e devolve para essas cidades usarem nos hospitais. Se faltar sangue nesses locais, pelo acordo, as entidades entram em contato para pedir do Hemorgs ou dos bancos de outros hospitais, como o Conceição — explica a hematologista.
Ela acredita que, com os estoques baixando pela saída de unidade móvel, o sistema todo pode ser prejudicado. Segundo Kátia, o banco de sangue do Conceição não foi informado oficialmente da medida tomada pela SES-RS.
Associação vai buscar auxílio no MP
Quem trabalha voluntariamente organizando eventos de doação de sangue está decepcionado com a decisão do governo estadual. Os membros da Associação Sapucaiense de Apoio aos Doadores de Sangue (ASADS) receberam a notícia depois de terem encaminhado um pedido de visita da unidade móvel.
— Costumamos ter duas datas por ano, além dos comboios que fazemos mensalmente para levar doadores até Porto Alegre. Mas com a unidade móvel é possível reunir quase 200 pessoas para doar. Agora, todo essa sangue que seria doado será perdido. Estamos muito preocupados com o que vai acontecer — diz o presidente da associação de Sapucaia do Sul, Osvaldo Faleiro.
Segundo a direção da entidade formada por voluntários, documentos estão sendo reunidos para que uma ação civil pública seja aberta junto ao Ministério Público. A SES-RS diz que, apesar da interrupção dos agendamentos de visita da unidade móvel, o Hemorgs mantém seu apoio às associações de doadores, inclusive com palestras, e realiza o transporte destes até a sede para coleta de sangue.