Pobreza menstrual
Dentro do sistema prisional gaúcho, detentas produzem absorventes reutilizáveis
Vinte e oito apenadas do Presídio Estadual Feminino de Torres e 12 de Lajeado já foram capacitadas e estão confeccionando itens laváveis, que são uma alternativa aos descartáveis
Mulheres que cumprem pena em presídios gaúchos estão desenvolvendo um projeto que ajuda a combater a pobreza menstrual no cárcere, lhes dá mais autonomia sobre seu ciclo e tem potencial de aliviar os gastos do Estado. Vinte e oito detentas do Presídio Estadual Feminino de Torres e 12 de Lajeado já foram capacitadas e estão confeccionando bioabsorventes laváveis, que são uma alternativa aos descartáveis. A ação é uma parceria entre a Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe), as casas prisionais gaúchas e a Herself, empresa gaúcha fundada por alunas da Universidade Federal do RS (UFRGS) que desenvolve calcinhas menstruais e absorventes reutilizáveis.
As duas casas prisionais que recebem o projeto atualmente aproveitam instalações pré-existentes, como máquinas e ferramentas utilizadas em cursos de corte e costura. Detentas interessadas em fazer parte da produção aprendem com voluntárias da Herself sobre a modelagem, as três camadas de tecidos necessárias para uma menstruação segura e a montagem do produto, que fica para o uso delas e de suas colegas.
O projeto impacta diferentes áreas, e uma delas diz respeito aos valores despendidos pelo Estado para fornecer absorventes descartáveis às detentas. O investimento no produto duradouro, que tem custo estimado inferior a R$ 3 por absorvente, promete ser uma boa opção para a saúde dessas mulheres para as contas públicas no longo prazo.
— Há um olhar de economicidade para o Estado, que é quem fornece os absorventes descartáveis. Quatro unidades de bioabsorventes são suficientes para o ciclo, pois são laváveis. E eles têm durabilidade de cerca de três anos, o que gera economia para o Estado e ainda diminui o descarte de absorventes na natureza — afirma Elisandra Minozzo, chefe da divisão de trabalho prisional da Susepe.
Outra frente da iniciativa é sanar um problema que coloca as mulheres presas em condições de pobreza menstrual: conforme relatam Elisandra e a diretora do presídio de Torres, Cátia de Melo, não são raros os casos em que o pacote de oito absorventes descartáveis, entregue mensalmente pelo Estado a cada detenta, é insuficiente para dar conta do ciclo menstrual. Também há relatos de alergias e desconforto provocados pelo produto descartável.
— Se distribui o absorvente que estiver previsto em licitação, que nem sempre é de alta qualidade, e em um número que é igual para todas. Só que os ciclos das mulheres são diferentes. O bioabsorvente é hipoalergênico, mantém o fluxo longe do corpo, evitando infecções, micoses, e é melhor para a saúde da mulher. E ajuda a diminuir essa sensação de que "qualquer coisa tá bom, qualquer coisa serve, pois é uma mulher presa" — afirma Elisandra.
O que é jornalismo de soluções, presente nesta reportagem?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
Pobreza menstrual é abordada em relatório da Unicef
Um relatório do Unicef publicado em maio deste ano define como pobreza menstrual a situação vivenciada por meninas e mulheres devido à falta de acesso a recursos (absorventes, papel higiênico), infraestrutura (banheiros, saneamento básico) e conhecimento para que tenham plena capacidade de cuidar da sua menstruação. Estima-se que uma em cada quatro meninas vive em situação de pobreza menstrual, o que impacta nas suas relações sociais e até no desempenho e na frequência escolares.
Também joga luz sobre este tema o relatório Livre Para Menstruar, um estudo do movimento Girl Up Brasil em parceria com a Herself. O documento aponta que, no mundo, 500 milhões de meninas e mulheres não dispõem de instalações para cuidar da sua higiene menstrual.
As profissionais ouvidas por GZH frisam que a intenção do projeto de fabricação de bioabsorventes é possibilitar que as mulheres presas possam escolher a forma de menstruar que lhes convém, e que nenhuma será obrigada a aderir ao bioabsorvente se não quiser.
Leia também
Únicas permissionárias negras do Mercado Público criam campanha para reabrir loja no segundo andar
Aulas domiciliares ajudam estudantes a enfrentar perdas de aprendizagem com a pandemia em Esteio
Jovens aprendizes produzem casinhas para cães de moradores de rua atendidos em abrigos da Capital
— A ideia do projeto partiu de nós, de nossa insistência para que o poder público pudesse conhecer a possibilidade de as mulheres menstruarem de outra maneira, levando em conta a autonomia delas sobre o próprio corpo e lhes oferecendo uma escolha. É para que elas possam se questionar "poxa, se eu tenho alergias, se tenho assaduras, será que não dá para menstruar de outra forma?" — afirma Raissa Kist, uma das sócias fundadoras da Herself.
Empreendedorismo e remissão de pena
A empresa gaúcha é responsável por ministrar oficinas, nas quais incentivam o empreendedorismo feminino, falam de educação menstrual e tentam combater estigmas associados à menstruação — vista frequentemente como algo sujo, a ser escondido. Com a iniciativa, vem uma mudança de cultura, já que, como lembra Elisandra, um bioabsorvente "não é um paninho da vovó", e sim uma tecnologia que pode trazer mais conforto. No presídio de Torres, o primeiro onde a iniciativa foi implementada, em dezembro de 2020, a remessa inicial de 130 absorventes já foi produzida e aprovada por parte das detentas.
— Pra mim é mais confortável usar este do que o absorvente normal porque eu tenho um pouco de alergia. É realmente a mesma sensação de usar uma calcinha. E nós lavamos com sabão de glicerina e colocamos a secar no sol — conta a apenada Elen.
Nas aulas de produção de roupas e artesanatos, e com a ajuda das colegas detentas, Elen aprendeu a costurar. Essa também é uma das missões da iniciativa, oferecer conhecimentos que poderão ser aplicados quando as mulheres deixarem o cárcere. E a participação no projeto garante remissão de pena: a cada três dias trabalhados, um é subtraído da sentença.
— Nos ensinaram sobre a modelagem, as camadas de tecido. Os absorventes não são difíceis de fazer. Enquanto temos tecido, trabalhamos neles de segunda a sexta — conta a detenta Lucimar.
Em Torres, os recursos para a compra do tecido tecnológico junto à Herself vieram do conselho da comunidade, que organizou um bazar em benefício do presídio. Para a confecção das próximas levas de absorventes, a entidade busca recursos junto à Susepe. Em Lajeado, a primeira edição do programa começou no final de julho e está sendo realizada com recursos estaduais.
— Estimulamos que as mulheres presas possam produzir e desenvolver seu próprio negócio futuramente. O objetivo também é que as mais de 2 mil detentas do Rio Grande do Sul possam confeccionar não só para elas mesmas, mas para atender demandas de políticas públicas do município e do Estado. Estão tramitando propostas de lei que preveem isso — afirma Raissa.