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Papo Reto 

Manoel Soares: "Muitas digitais"

Colunista escreve para o Diário Gaúcho aos sábados 

10/08/2024 - 05h00min


Diário Gaúcho
Diário Gaúcho
Manoel Soares / Arquivo Pessoal
Manoel reflete sobre a dura rotina das mães atípicas.

A tragédia envolvendo o avião que caiu no interior de São Paulo ontem, que vitimou 61 pessoas, acabou silenciando um fato que estava ecoando nas redes sociais. Ana Clara Santos, 26 anos, mãe de um menino autista, depois de tentar por anos tratamento para ele, em um surto, tirou a vida do próprio filho. Que ela cometeu um crime bárbaro não existe dúvida. Ela tem que responder pelo que fez e não estamos aqui para passar pano.

Porém, quem vive a realidade de uma criança autista sabe que, assim como muitos estudos já demonstraram, as mães vivem um nível de estresse equivalente ao de um soldado em guerra. Mulheres abandonadas pelos pais das crianças vivem a vida como se fosse um único dia, não sabem se é segunda ou domingo. Esquecem de higiene pessoal, abandonam a vaidade, o autocuidado e desejam deixar de viver pelo menos uma vez no mês. Na rede pública não encontram amparo, pois o atendimento não acompanha a urgência do ciclo de podas neurais da primeira infância de seus filhos. A rede privada de saúde cria um verdadeiro labirinto de procedimentos e protocolos para que essas mulheres caiam de exaustão. A família, muitas vezes, assiste de longe com amparos eventuais, mas sem ser a rede sólida de apoio. No fim do dia é a mãe e uma criança em um colchão cheirando a urina, regado a seletividade alimentar, distúrbio do sono e um desejo que a noite seja eterna. 

Nos 365 dias do ano essa mãe funciona sem parar, não falha, não cede, não recua, mas a jornada ingrata e geralmente solitária faz com que, um dia, a região do cérebro conhecida como pré-cúneo falhe e essa mãe surte. Algumas choram, outras quebram tudo, outras bebem até cair, mas essa que citei no começo do texto tirou a vida do ser que ela mais amava. A verdade é que no atestado de óbito desse anjinho tem as digitais de uma sociedade hipócrita que ignora essas mães. Quero aqui estender minha solidariedade às mães atípicas, pois a jornada é dura.

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