Rotina de assédios
Por que "secar" uma mulher na rua transforma uma simples caminhada em constrangimento
DG acompanhou estudante pelas ruas do Centro de Porto Alegre e viu as reações dos homens ao passarem por ela
Rua dos Andradas, 11h30min. A mulher de 25 anos, cabelos longos, calça legging preta, polainas e tênis caminha entre a multidão que circula pelo Centro de Porto Alegre. Na Esquina Democrática, três homens comentam:
– Que tamanho será que tem a calcinha dela?
A pergunta surge após olhares lascivos para a estudante do curso técnico de Enfermagem Raquel Sampaio. Durante uma hora de caminhada em trajetos cotidianos da moradora da Capital, foram inúmeras as viradas de pescoço, os olhares libidinosos e até os comentários que a reportagem, à distância, pode acompanhar.
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– Que morena gostosa! – disse um idoso, mais adiante, acrescentando ainda um comentário de baixo calão.
Raquel permitiu que a reportagem do DG registrasse a reação com sua passagem, deixando evidente que o assédio urbano (realizado em local público) contra as mulheres é comum e precisa ser combatido.
– Tem cara tarado, sem-vergonha, que fala bagaceirice. Eu me irrito quando passa do limite – explica Raquel.
Constrangimento
De acordo com a defensora pública Luciana Artus Schneider, dirigente do Núcleo de Defesa da Mulher (Nudem), toda e qualquer atitude masculina que tenha o efeito de causar constrangimento de cunho sexual pode ser considerada assédio. Desde um olhar lascivo até uma cantada, várias atitudes machistas configuram assédio sexual. Trata-se de uma forma de violência contra a mulher, que faz parte da cultura do estupro – assunto em discussão depois do caso da adolescente de 16 anos, do Rio de Janeiro, que sofreu um estupro coletivo. Essa cultura, conforme a defensora, "minimiza as violências praticadas contra as mulheres, taxando-as de cantadas, piadas e brincadeiras e tende a culpabilizar a própria mulher".
Raquel relata já ter sofrido violência mais grave:
– Na Borges de Medeiros, um cara começou a me seguir. Logo, me passou a mão. Eu fui dar um tapa nele, ele segurou o meu braço e me deu um tapa no rosto. Eu comecei a chorar e ele acabou fugindo.
A defensora pública acrescenta que o assédio é, acima de tudo, falta de respeito com a mulher e não pode ser tolerado. O conceito depende muito mais do efeito que a atitude causa na mulher (medo e vergonha, por exemplo), do que da conduta propriamente dita.
A culpa não é delas
Raquel conta que sempre foi vaidosa e gostou de se arrumar. Mesmo comum, a roupa dela ontem deixava evidente a sua beleza.
– Ela é uma vítima. E dizer que a forma como a mulher se veste, ou caminha, ou dança, por exemplo, pode causar o assédio é uma atitude extremamente machista e imprópria, que serve apenas para fomentar a cultura do estupro – esclarece a defensora pública Luciana.
– Eu tenho vergonha, me sinto muito mal quando mexem comigo quando minha mãe está junto – revela Raquel, que costuma andar rápido na rua para não dar ouvidos a comentários.
A defensora pública ressalta que é preciso deixar claro que o assédio sexual não é culpa da mulher.
Caso de polícia
De acordo com a defensora pública Luciana, o assédio é uma forma de violência. E toda a mulher que sofre essa violência, ou mesmo que se sente ameaçada ou amedrontada, pode recorrer à Brigada Militar, em busca de proteção, ou à Polícia Civil para registrar ocorrência – a recomendação é de que seja acionada uma Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM).
Será, então, averiguado se é caso de prática de crime ou então, se a questão pode gerar uma ação civil de reparação de danos.
Para entender
Abuso: é um termo genérico, que abarca várias situações. Por exemplo: assédio sexual é um abuso, estupro é um abuso, até uma cantada pode ser um abuso, dependendo do efeito que cause na mulher.
Assédio sexual: é um crime previsto no Código Penal ("constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente de sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena de um a dois anos").
Estupro: também é crime e não precisa necessariamente da conjunção carnal. Um beijo lascivo, passar as mãos no corpo da mulher, o ato libidinoso, por exemplo, já é considerado estupro. No caso de menor de 14 anos, até a relação sexual consentida é considerada crime de estupro.