Mulheres da Periferia
Guerreiras: conheça Paloma, que criou os três filhos com a construção civil e ergueu a própria casa em Canoas
Moradora do bairro Guajuviras é a primeira de uma série de reportagens que o Diário Gaúcho exibirá mensalmente
O encontro com nossa entrevistada ocorreu numa tarde abafada de quarta-feira, no início do mês. Para quem não é cria do bairro Guajuviras, em Canoas, na Região Metropolitana, localizar-se por lá é bem complicado. São setores, quadras, conjunções de números e letras. Sorte que a tecnologia deu uma força: lá pelas tantas, pedimos a sua localização por WhatsApp, o que fez com que chegássemos com tranquilidade e no horário marcado.
Paloma da Silveira, 36 anos, marcou o bate-papo com o Diário Gaúcho no local onde trabalhava naquele dia: um salão de beleza que recebia pequenas reformas e pintura, feitas por ela.
– Se não se importarem, eu vou continuar trabalhando, pois quero terminar tudo hoje. Já tenho outro serviço marcado para amanhã – avisou, enquanto lidava com tintas e pincéis.
Leia mais
Cris Silva: "A melhor decisão que poderia tomar por mim"
Com show gratuito, dupla 50 Tons de Pretas inicia nesta quinta-feira em Porto Alegre a turnê "Tira o Teu Racismo do Caminho"
O que propõem as medidas voltadas para as mulheres anunciadas pelo governo federal
Magra e ágil, Paloma usava calça e blusa com marcas de tinta. Os cabelos estavam semipresos, e no rosto chamavam atenção os expressivos olhos verdes. A camiseta branca já entregava a mensagem: “Guerreira pela própria natureza”. E os brincos longos, dourados, davam a amostra de uma vaidade que não é abandonada em nenhuma ocasião.
Paloma tem muito orgulho de sua profissão: trabalhadora da construção civil. É com ela que, há anos, sustenta os três filhos, hoje adolescentes. Nada na sua vida foi, nem é até hoje, fácil. Tudo que possui foi conquistado com muitas horas de trabalho e poucas de sono, correria e uma grande dose de ousadia.
– Ensino para a minha filha (Gabrielle, 18 anos): não baixa a cabeça para nada que o mundo te falar. A mulher tá onde ela quiser, faz o que ela quiser, tem o direito de ser o que ela quiser – ensina Paloma.
Questionamentos no início
Com 22 anos, Paloma já era mãe de duas crianças e esperava a terceira. Separou-se do pai dos seus três filhos quando estava grávida de oito meses do caçula, João, hoje com 14 anos.
– Na época, eu morava aqui no Guajuviras e trabalhava na padaria de um supermercado. Surgiu um curso no Senai de eletricista e encanador. Me inscrevi, a minha mãe ficou louca: “Tu é doida, sair do serviço para fazer um curso. Como tu vai trabalhar numa obra, como vai sustentar as crianças?”.
Os questionamentos não abalaram a jovem e decidida Paloma:
– Eles davam um lanche e R$ 10 para a passagem. O curso era no Igara (bairro vizinho ao Guajuviras), eu ia a pé e usava o dinheiro das passagens para comprar o leite deles. O lanche, eu levava para comerem em casa.
Com o curso concluído, Paloma foi procurar emprego como eletricista.
– Cheguei lá e a vaga era de servente. Aceitei, não podia ficar desempregada com as crianças.
O próximo emprego foi como auxiliar de eletricista, na Capital:
– O meu menor, o João, era nenê na época. Eu saía ele estava dormindo, eu voltava e ele continuava dormindo. Foi entender que eu era a mãe dele quando tinha um ano e nove meses.
Ela chegou a ser promovida a eletricista, até que, em 2015, a crise econômica fez diversas obras pararem na região. Paloma ficou um ano fazendo bicos. Trabalhou até em obras no estádio Beira-Rio.
Em 2018, fez um curso de pintura promovido pela ONG Mulher em Construção, que capacita mulheres para a construção civil.
– Elas deram o curso na MRV (construtora), eram 16 mulheres, e nós fomos contratadas de carteira assinada – relembra.
Covid a fez repensar a vida
Atuando pela MRV em uma sequência de obras, Paloma começou a trabalhar em um condomínio na Avenida Protásio Alves, em Porto Alegre:
– Era muito longe. Eu saía de casa às cinco e meia da manhã e voltava às oito e meia da noite. Um dia, meus filhos me disseram assim: “Mãe, tu não vive mais? Tu só trabalha. Cadê a senhora?”.
Paloma começou a questionar se tanto esforço valia a pena, quando um novo furacão chegou em sua vida: a covid.
– Fiquei muito mal. Só não fui internada porque o meu filho menor também pegou, daí se me internassem, não teria quem cuidasse dele. Foi uma coisa horrível. Demorei 45 dias para me recuperar. Voltei para a obra e não era mais a mesma pessoa. Fiquei com sequelas. Cansava, já não conseguia mais subir as escadas, não conseguia mais fazer o serviço. Pensei em tantas coisas, e se eu tivesse morrido? – diz.
Foi quando recebeu a proposta de ser encarregada em uma obra na Restinga, na Capital. Seriam ainda mais horas de deslocamento, mais tempo longe de casa:
– Decidi sair. Saí feliz. Hoje, trabalho por conta própria. Faço meus horários e já conquistei uma boa freguesia.
Batalha pelo sonho da casa própria
Com três filhos para criar, Paloma viveu uma vida nômade por um bom tempo, pulando de aluguel em aluguel.
– Passei muito trabalho, paguei muito aluguel na vida. Vivia que nem cigana com as crianças. Torres, Farroupilha, Sapucaia, São Leopoldo... Rio Branco, Mathias, Guajuviras (bairros de Canoas), quase todos os setores do Guajuviras. As crianças viviam trocando de escola, tipo a cada seis meses – conta.
Na época da carteira assinada na MRV, viu que era hora de sossegar. Começou a construir no terreno do pai, no Guajuviras:
– Contratei quatro pedreiros diferentes para a minha casa, nenhum deles fez o serviço que eu queria. Só joguei dinheiro fora. Bem no fim, consertei o serviço dos pedreiros. Fiz um curso online e disse: “Não vou pagar mais ninguém”. Precisava erguer uma parede na cozinha. Eu tava meio depressiva... Quer saber? Vou curar a minha depressão erguendo uma parede sozinha. Foi a melhor coisa que eu fiz. Chamei todo mundo e fiz um mutirão em casa. Deu aquele baita temporal em Canoas (em agosto de 2022), derrubou um monte de casas, mas não caiu a minha parede.
Leia mais
Gaúchas com maior escolaridade têm média salarial 37,2% menor que a dos homens, aponta estudo da PUCRS
Paratleta pede apoio para seguir treinando
No sobradinho onde Paloma vive com os dois filhos mais novos (a mais velha casou e se mudou), destacam-se uma geladeira duplex na cor inox e uma TV nova, suas mais recentes aquisições.
As paredes não possuem reboco, a escada é um tanto perigosa e ainda há muito a ser feito. Mas ela vai aos poucos, com a certeza da mão de obra qualificada: a própria.
Entre suas conquistas, além da casa, está uma viagem de avião a São Paulo, na época do Mulher em Construção, para ser monitora em um curso.
– Foi lindo, foi um sonho realizado andar por cima das nuvens. Algo que eu nunca pensei faria – relata.
O próximo sonho, além da conclusão da casa, é montar um negócio próprio, uma firma de instalação de gesso em 3D.
Convivência com o machismo
No mercado da construção civil, que emprega formalmente mais de 2,5 milhões de pessoas no Brasil, apenas pouco mais de 10% são mulheres. Paloma já sentiu na pele, muitas vezes, o preconceito por ser mulher:
– Já deixei de ser contratada por ser mulher. Cheguei no dia da entrevista, só tinha homem. Quando fui entrevistada, o cara falou: “O que que tu quer aqui, vai trabalhar numa padaria, moça”. Falei que gostava da obra, da construção civil. E ele disse: “Aqui não é lugar pra mulher, aqui só tem homem”. Ele que perdeu uma baita funcionária.
Paloma reconhece que já lidou com muito machismo. Já foi demitida, por exemplo, por levar um filho ao médico.
– Chegava para trabalhar e já iam me indicando o caminho: “Ah, tu veio para a limpeza”. Daí eu dizia que não, que tinha vindo para pintar. Riam, como se eu não conseguisse: “Lugar de bonequinha não é na obra, tem que estar em casa. Lavar, passar e cozinhar”.
Para Paloma, “a mulher tem uma força interna que não se sabe direito de onde vem, mas é abençoada”. Por isso, não deve desistir nunca de seus objetivos.
– Minha filha se chateia fácil com as coisas e me diz: “Eu não sei ser como tu, mãe, meia macho”. Eu não sou, é que a vida ensina tanto, que algumas dores a gente já nem sente mais – conclui.
Participe
- Conhece alguma guerreira que mereça ter a sua história contada pelo Diário Gaúcho? Mande um e-mail para lis.aline@diariogaucho.com.br ou envie mensagem via WhatsApp (51) 99947-0487.