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Vozes contra o preconceito

Negra Jaque, MC da VR, grupo Pyração e banda Punk Rockets: quatro histórias de superação de artistas de periferia

Artistas, de origem periférica, dão seus relatos de como superar as dificuldades, como preconceito e racismo

28/11/2020 - 11h32min

Atualizada em: 29/11/2020 - 15h42min


José Augusto Barros
José Augusto Barros
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Fabiana Menini / Divulgação
Negra Jaque é uma das representantes mais fortes das mulheres na música gaúcha

Em um momento em que a origem humilde ou a cor da pele são alvos de preconceitos absurdos, o Diário Gaúcho traz exemplos de artistas que vêm driblando barreiras com a intenção de mostrar o valor da arte que é produzida na periferia. 

Para valorizar as histórias de artistas talentosos, que representam suas comunidades e as enchem de orgulho, o DG traz relatos de Negra Jaque, MC da VR e de integrantes do grupo Pyração e da banda PunkRockets. 

Em comum, perfis inspiradores de quem superou, e segue superando, obstáculos, “nãos” e todo o tipo de dificuldade para levar adiante não só o seu trabalho, mas uma causa maior, que envolve todos nós: o combate às desigualdades e aos preconceitos, para que não acabem com sonhos que podem mudar vidas. 

"Cheguei até aqui com apoio de coletivos, organizações, mulheres e negros"

- Falar de trajetória, e de ser artista, vai além da música e composição. Hoje, o artista completo trabalha com música e posicionamento e com a própria postura que escolhe pra si.

É dessa maneira que Jaqueline Trindade Pereira, a Negra Jaque,começa a entrevista, falando dos desafios que enfrentou até 2020, para chegar a ser uma das mais representativas mulheres da cultura gaúcha. Dona de hits como Cabelo Crespo, a rapper, 33 anos, que cresceu no Morro da Cruz, na Zona Leste da Capital, chega em um momento importante da carreira, como uma voz forte de sua geração e das mulheres negras, mas sem esquecer de tudo que passou até aqui. Jaque, até meados de 2012, integrou o grupo Pesadelo do Sistema, que venceu o Concurso Chance, que era promovido pelo Diário Gaúcho, em 2008. Período que ela define, aliás, como seu porto seguro.

- Divido minha carreira em dois blocos. Na primeira, era uma jovenzinha, de 18 anos, e integrava o Pesadelo do Sistema. Nessa época, eu estava no meu porto seguro, com a galera do Partenon. Era um grupo comunitário, homens e mulheres juntos. Quanto estamos juntos, a carga de preconceito é menor. A gente se encontra na diversidade e consegue dialogar - constata. 

Desde 2012 em carreira solo, a rapper, que foi a primeira mulher a vencer a Batalha do Mercado, em 2013, um dos mais tradicionais eventos de hip-hop do Rio Grande do Sul, teve que ser "a Negra Jaque", expressão que ela usa para falar sobre sua nova fase. Para vencer o evento, ela lembra, teve que ir cavocando vagas em todos os eventos do gênero na Capital.

- Foi um trabalho muito árduo, tinha poucas oportunidades, barreiras eram colocadas o tempo todo. Em eventos, me chamavam só para abrir shows, por exemplo. Depois dos eventos, eu ia procurar minhas fotos nas postagens dos eventos, nas redes sociais, e não achava. Não fazia, fotos minhas. E essas barreiras são colocadas para dizer que a gente não tem que estar ali - atesta. 

Hoje, ela começa a colher os frutos de tantos anos de luta. Além de já ter vencido a Batalha do Mercado, lançou canções com parcerias importantes no mundo do rap, como na faixa Narrador, que ela divide os vocais com o angolano Kanhanga, uma das melhores canções do álbum Deus que Dança (2018). 

- Ao longo do tempo, as coisas foram melhorando para mim. Coloquei meu nome da história da música, me uni a muitas mulheres que são da música e da cultura. Sempre pensei assim: "Não tem ninguém lá? Vamos lá fazer, então. Sou negra, periférica, mulher. Quero fazer da possibilidade uma ferramenta de oportunidade. E cheguei até aqui com apoio de coletivos, organizações, mulheres e negros que possibilitaram que eu tivesse voz - finaliza Jaque, que também é educadora popular, em um curso oferecido pela ONG Instituto Leonardo Murialdo.

Exemplo na Restinga

- O que eu sofri, e sofro até hoje, é o preconceito com o funk. Muitos "nãos", shows que eram desmarcados em cima da hora, gente que subestimou meu potencial e que, hoje, quer andar comigo.

Divulgação / Divulgação
Funkeiro está na música desde os 12 anos

Mesmo com esses relatos, MC da VR, 27 anos, morador da Restinga, nunca desistiu do seu sonho. Da VR, que já integrou uma banda de samba rock e uma de reggae e que integra a bateria da escola Estado Maior da Restinga desde os seus oito anos, gravou sua primeira canção em 2012, nunca desistiu e nunca deixou que as más influências entrassem em sua vida. Seu grande salto para começar a ganhar destaque na carreira foi o lançamento da canção Ela é Envolvente.

Dali em diante, muito amparado pelos pais, Raul e Dilane, ele veio construindo um planejamento sólido de sua carreira, mesmo enfrentando todas as dificuldades e preconceitos por ser oriundo do bairro, e de origem humilde.

Primeiro, começou a pensar onde investir o primeiro dinheiro que ganhou no funk. Comprou três ovelhas e um cavalo.

Depois, em paralelo à lançamentos como um clipe com a participação do ex-jogador da Dupla Gre-Nal, Paulo César Tinga, por exemplo, ele passou a pensar em outras possibilidades de garantir seu futuro. Em 2017, abriu a Barbearia do VR, no bairro, sempre sob a supervisão do pai.

- Investi ali boa parte do dinheiro que ganhei no funk, nos momentos bons, pois ele deu uma caída, nos últimos tempos. Sempre falei pros meus pais que eu queria abrir uma barbearia. E foi meu pai que construiu toda a barbearia - comenta, orgulhoso, o funkeiro, que emprega três barbeiros, atualmente, e está à procura de um quarto. 

Lembrando do passado de dificuldades que teve, Da VR não esquece de quem mais precisa, e mostra que tem muito pé no chão. Neste ano, em duas lives, arrecadou mais de toneladas de alimentos e 900 cobertores, todos doados.

Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal
Da VR e Tinga: dia após dia, batalhas e sonhos realizados

- Fiz tudo isso graças ao meu trabalho, e por causa da minha imagem, que está mais conhecida, graças a Deus. Cuido muito da imagem, do que eu canto - finaliza. 

Pelo direito de viver um sonho

Oriundo da Bom Jesus, zona leste da Capital, o Pyração surgiu como boa parte dos grupos de pagode: a partir de uma brincadeira entre amigos. Enfrentando barreiras como o preconceito racial e a origem humilde, a turma liderada por Emerson Tuty, hoje, começa a colher frutos de anos de batalhas.

Reprodução / Facebook
Tuty destaca o amadurecimento do grupo

- Como somos de famílias com origem humilde, passamos muitas dificuldades. É uma luta constante. Enfrentamos preconceitos, várias coisas que nos atrapalharam. Mas essas coisas nos deram ainda mais força para trabalhar - afirma Tuty.

Sincero e sem papas na língua, Tuty diz que, por conta de suas origens, o samba é um dos gêneros em que se vê menos preconceito racial. Já fora...

- Existe um preconceito muito forte com quem faz samba. As pessoas acham que porque o cara é negro, porque toca samba, é vagabundo. E, na verdade, o trabalho é muito puxado - explica o vocalista.  

Conquistas

Entre as conquistas do Pyra, como é conhecido pelos fãs, está a gravação de um DVD ao vivo e a participação na roda de samba da rádio carioca FM O Dia, uma das mais representativas do país. 

- São provas do nosso amadurecimento em relação a tudo. Mas tem um rótulo que "pesa" muito, principalmente em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul: ser preto, pobre e de periferia. Uma das nossas conquistas é, em 11 anos, conseguir viver disso (da música). Não financeiramente ainda, mas viver esse sonho com dignidade - finaliza Tuty.

Elas mandam no punk rock

Em um meio pra lá de machista, o punk rock, quatro amigas – de Porto Alegre, Canoas, Guaíba e Alvorada - não se intimidaram e formaram a banda PunkRockets, em 2019. As gurias, fãs da banda norte-americana Ramones, já começam a chamar atenção na cena musical. 

Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal
Gurias não se intimidaram diante do racismo

As gurias, fãs da banda norte-americana Ramones, já começam a chamar atenção na cena musical. 

- Mesmo que existam dificuldades e preconceitos por sermos uma banda só de mulheres nesse gênero, continuamos firmes na busca do que curtimos fazer, que é, de alguma forma, viver da música - pontua Deborah Fontoura, guitarrista e backing vocal da turma. 

Visibilidade

Com a chegada da pandemia e a banda ainda no começo, as gurias tiveram que se virar nos 30 para divulgar o trabalho.

- Ganhamos uma boa visibilidade nos últimos tempos. Já recebemos inúmeros convites para apresentar o nosso som e pedidos de entrevistas, algumas até mesmo de fora do Brasil. Tudo isso é um grande incentivo para seguirmos mostrando nosso trabalho - salienta Marina Cerutti, baixista e backing vocal. 

Com um trabalho focado em mostrar canções autorais, as artistas lançaram, neste ano, o clipe da faixa Miragem, no YouTube, o primeiro da carreira. 

No começo deste mês, fizeram a primeira live-show da banda, no Instagram.

- Outras faixas, como Três Acordes e Inimigos Preferidos, terão clipes que serão lançados nos próximos meses. As composições trazem letras marcantes e reforçam a identidade da banda, que é levantar a bandeira do punk rock – observa a baterista Camila Fidelis. 






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