Tradicionalismo
Ousadia que virou troféu: como o CTG Tiarayú, de Porto Alegre, venceu o Enart 2019
Dois estilos diferentes foram apresentados no tablado do evento. Agora, grupo já pensa no ano que vem
No CTG Tiarayú, do bairro Jardim Itu, em Porto Alegre, a semana toda foi de comemoração. A invernada adulta ganhou, no final de semana passado, o Encontro de Artes e Tradição Gaúcha (Enart) – evento mais importante do calendário para as invernadas –, que ocorreu em Santa Cruz do Sul, nas categorias Danças Tradicionais Força A, Melhor Entrada, Melhor Saída, Destaque e Grupo Mais Popular.
Ao mesmo tempo, 2020 já começou por lá. Os planos para o próximo Enart precisam começar o quanto antes, e a equipe já está fervilhando de ideias para tentar o tricampeonato (a primeira vitória do CTG foi em 2016).
O troféu deste ano veio com uma proposta inovadora. O grupo contou a história da visita do botânico francês Auguste de Saint-Hilaire ao Rio Grande do Sul, entre 1820 e 1821, que virou um livro. Em sua jornada, ele passou por Porto Alegre, onde viu uma cidade com forte influência europeia e em desenvolvimento, mas também teve contato com índios nas Missões. Um grupo de bailarinos representou a visita à Capital, com trajes finos e um estilo de dança elegante. Outro representou os índios, com pilchas simples e coreografias rústicas. Ou seja, foram duas invernadas em uma única apresentação.
Antecedência
A ideia de explorar dois estilos tão diferentes foi de Carlos Eduardo Souza de Freitas, o Duda, 32 anos. Desenvolvedor de software e um apaixonado por CTGs desde os dois anos, atualmente acumula as funções de ensaiador, coreógrafo, posteiro e bailarino do Tiarayú.
– No ano passado, na segunda-feira após o Enart, estávamos em uma comemoração e eu disse para o Ronaldo Esteva, nosso diretor artístico (que toma as decisões sobre o tema), que já tinha uma ideia para 2019. Propus que a gente tivesse dois grupos, usando pilchas diferentes: um de braga, que é um traje bem elegante, e o outro de garrão, que é o primitivo – conta ele.
Soluções criativas para cada obstáculo
Para colocar o plano em prática, seria necessário ter mais bailarinos do que o grupo dispunha, já que, no tempo da apresentação do Enart (20 minutos divididos entre coreografia de entrada, três danças tradicionais e coreografia de saída), não seria possível fazer a troca das pilchas. A solução foi chamar ex-integrantes que, por algum motivo, tinham se afastado.
– Depois de apresentar formalmente a proposta para a patronagem e para o grupo, chamamos os ex-dançarinos para uma reunião e falamos sobre a ideia – conta Duda.
Leia também
Fotografia e tradicionalismo: a rotina dos colecionadores de memórias
Biografia de Teixeirinha é lançada na Feira do Livro de Porto Alegre
A história da primeira mulher credenciada pelo MTG como narradora de rodeios
Uma das coordenadoras da invernada e também bailarina, a enfermeira Cristiane Braun, 33 anos, relata a ansiedade antes de saber se o plano daria certo:
– Queríamos que todos aceitassem para a gente conseguir levar a ideia adiante. Todo mundo entrou de cabeça na nossa loucura (risos). Além disso, também convidamos alguns integrantes da invernada Juvenil e eles foram ótimos.
A viagem de Saint-Hilaire entrou no tema depois, como uma forma de unir os dois estilos. A ideia surgiu em pesquisas e conversas com outros integrantes.
Financeiro
Outro obstáculo para manter a invernada tão grande era o dinheiro – dançar em CTG, além de trabalhoso, é caro. No Tiarayú, os bailarinos pagam R$ 120 durante 10 meses do ano para participar. Além disso, há vários outros gastos, como deslocamento, alimentação e pilchas.
– Para não ficar tão pesado, fizemos uma série de eventos e rifas ao longo do ano para pagar as pilchas – diz Duda.
Rotina puxada de campeão
Com a iniciativa aceita, o Tiarayú começou o ano com cerca de 70 integrantes na invernada. De abril até novembro, os ensaios seguiram um rígido calendário, que iniciou com os dois grupos encontrando-se separadamente. Cada um deles se reunia durante um domingo por mês. Depois, havia encontros em finais de semana alternados.
Com a proximidade do grande evento, porém, era preciso treinar mais. Nas semanas anteriores ao Enart, os ensaios eram realizados todos os dias – varar as madrugadas no CTG virou cena comum. Diversos ensaios em conjunto foram realizados, inclusive com as pilchas e o cenário oficial – tudo para que o espetáculo fosse perfeito.
Além da Capital, os bailarinos se deslocavam de Canoas, Esteio, São Leopoldo, Estância Velha, Bento Gonçalves, Santa Cruz do Sul e até Florianópolis, em Santa Catarina.
Leia também
Após fazer parte de gestão de peões, mulher transexual recebe homenagem como prenda
"É a realização de um sonho", diz 1ª Prenda do Estado sobre a conquista da faixa
Conheça o estudante escolhido como Peão Farroupilha do RS
Desafio
Segundo Cristiane, o tamanho do grupo foi justamente o maior desafio.
– Geralmente, uma invernada tem 40 integrantes. Tínhamos mais de 70. Era uma missão gigante. Temos pessoas com diferentes opiniões, rotinas, idades. Era preciso lidar com tudo isso. Eu, como também sou bailarina, muitas vezes entendia o cansaço, mas também precisava fazer cobranças. Mas todos tinham um objetivo – conta.
Mesmo morando a menos de cinco minutos do CTG, Duda também sentiu o peso da rotina:
– Como tenho várias funções, eu participava dos ensaios dos dois grupos. E ainda tem trabalho, vida pessoal... é realmente muito puxado. Mas é o que amo fazer.
“Achamos que era uma loucura”
Os bailarinos Eduardo Leal, 31 anos, e Vanessa Vega, 33 anos, foram dois dos que voltaram depois de algum tempo afastados para reforçar a invernada campeã. Casados, ambos deixaram de dançar no Tiarayú em 2016, logo após a primeira vitória no Enart.
– Eu comecei a dançar em 2012, minha esposa está no grupo há mais de 20 anos. Por anos, nós adiamos outros projetos pessoais em prol de um objetivo, que era ganhar o primeiro Enart com as pessoas que faziam parte daquele grupo com a gente. Quando alcançamos o título, a gente chegou à conclusão que o nosso objetivo tinha sido alcançado – conta Eduardo.
O cansaço, segundo Vanessa, também foi determinante:
– É muito puxado! Não são só os ensaios, tem muitos compromissos, apresentações, gastos. Isso já estava me esgotando. Mas, na verdade, a gente nunca abandonou. Paramos de dançar mas estávamos aqui, acompanhando direto. O Eduardo me dizia: “tu não está dançando, mas não sai de lá!” (risos).
Eduardo faz coro:
– Nos dois Enarts que não dançamos, fomos até Santa Cruz. Descarregamos caminhão, acompanhamos de perto, ajudamos no que foi necessário. A gente imaginava que seria tranquilo (o afastamento), pelo cansaço de anos anteriores, mas vimos que não. Paramos de dançar, mas não saímos do CTG.
Dever cumprido
Eles são unânimes ao dizer que aceitaram o convite para voltar logo de cara. Mas também concordam que a ideia era, pelo menos, extravagante.
– Eu achei uma coisa muito inovadora chamar pessoas que tinham parado, podermos viver isso de novo. Essa foi a maior motivação para voltar. Mas sim, achamos que era uma loucura. Era muita gente. Já é difícil ter uma invernada, imagina duas? Não imaginava como ia ser – conta Vanessa.
Mas o tamanho do desafio fez a vitória ser ainda mais comemorada.
– Com um projeto audacioso, tínhamos a consciência de que tinha que sair perfeito. E que, mesmo se saísse perfeito, não superaria 2016, por tudo o que aquele título representou. No domingo, depois da apresentação, quando a gente viu o ginásio lotado, de pé, batendo palmas, gritando o nosso nome, soube que o nosso dever estava cumprido, com qualquer resultado. O título apenas coroou um trabalho. Foi gratificante – finaliza Eduardo.
2020 já começou
Se a apresentação de 2019 começou a ser planejada logo após o Enart de 2018, o próximo não será diferente. Os integrantes são unânimes ao dizer que é impossível não pensar no futuro.
– Na segunda-feira após o Enart, na comemoração, já nos reunimos com os coreógrafos para planejar 2020. É impossível não pensar. Já temos algumas ideias germinando – conta Cristiane, que, é claro, faz mistério sobre o futuro.
Antes do próximo encontro estadual, a invernada tem um compromisso, em janeiro: o Nacional, competição organizada pela Confederação Brasileira de Tradição Gaúcha (CBTG), que reúne centros de tradições gaúchas vencedores em seus Estados. Depois, foco no Enart 2020.
– Acredito que começaremos a trabalhar efetivamente com o tema do Enart do ano que vem em março, mais ou menos – finaliza Cristiane.
Como atuais campeões e após uma apresentação tão surpreendente, a responsabilidade aumenta.
– Com certeza, mas vamos nos preparar muito para fazer bonito novamente – torce Duda.
Para que tudo saia perfeito, diversos aspectos devem ser pensados. O hotel no qual as equipes vão se hospedar em 2020, por exemplo, já foi reservado pela patroa do CTG, Vera Lucia Menna Barreto.
– Voltei de Santa Cruz do Sul só na segunda-feira, depois de todo mundo, mas já fiz todas as reservas. Temos um trabalho grande para que nada dê errado fora do tablado e atrapalhe a apresentação – diz ela.
Números
/// A equipe do Tiarayú no Enart era composta por mais de cem pessoas.
/// Entre elas, 68 bailarinos na invernada.
/// O gasto com as pilchas foi de cerca de R$ 50 mil. O gasto total para o Enart é estimado em R$ 160 mil.
/// Nos últimos seis anos, o Tiarayú foi vice-campeão quatro vezes (2014, 2015, 2017 e 2018) e campeão duas vezes (2016 e 2019) no Enart.